maio 30, 2011

O Valor das Artes Liberais para o Estudante de Humanidades

Palestra realizada em 30 de Maio, pelo evento III Strategos Apresenta.

Fundado em 2010, o projeto de extensão Estudos Humanistas possui um molde educacional ainda pouco conhecido nas universidades brasileiras, salvo uma ou outra iniciativa isolada [1]. Estamos falando da Educação Liberal (ou Clássica), que passa pelo estudo das Artes Liberais.

A motivação principal para o projeto é uma discussão filosófica atemporal: estudar o que é o ser humano. Em outras palavras, entender a natureza e a condição humanas, suas formas de enxergar a realidade e quais os principais valores humanos.

Quando falamos em Artes Liberais ou em Educação Liberal, cabe definir o que entendemos por “liberal”, até mesmo para evitar confusões com outros significados desta palavra (liberalismo econômico, liberalismo político, liberalidade etc.). Segundo José Monir Nasser, em sua introdução ao “Trivium” de Miriam Joseph, o sentido da palavra “liberal” vem de “líber”, “livre”, pois estas artes liberais eram ensinadas ao homem livre, em oposição às “artes servis” (p.ex., a marcenaria e a engenharia), ministradas ao homem “preso” e controlado por guildas, e às “belas artes”, que se concretizam na obra de arte – não sendo, portanto, imanentes. Ou seja, as Artes Liberais não produzem nenhum objeto exterior, mas visam à edificação do próprio sujeito que as pratica.

Ana Paula Rosendo, em “A Idéia de Educação Liberal no Pensamento de Michael Oakeshott”, acrescenta outro aspecto a essa definição: “ser ‘liberal’ significa estar-se emancipado das ocupações triviais da vida e a escola [2] é considerada como o local onde este clima de desprendimento das rotinas e problemas diários pode ocorrer. (...) A escola deve ser um ‘lugar à parte’ no qual os herdeiros de uma cultura podem encontrar-se com a sua herança moral e intelectual.” Ou seja, as Artes Liberais cultivam o “ócio criativo” em sua mais nobre faceta: aprender a ser humano.

Segundo esta concepção, cabe à educação permitir o florescimento do potencial humano, colocando o indivíduo em contato direto com a tradição filosófica, científica e artística. Miriam Joseph considera que, por serem fins em si mesmas, “as artes liberais ensinam a viver”.

Para entender melhor este projeto educacional, precisamos remontar à Idade Média, mais especificamente no período da Escolástica e da fundação das primeiras universidades. Visando ao desenvolvimento das capacidades intelectuais dos estudantes, fornecia-se uma formação ampla, com um currículo de conhecimentos gerais, e não especializados, vocacionais ou profissionalizantes, como é comum hoje em dia. As supracitadas Artes Liberais eram sete, divididas em duas áreas: o Trivium (gramática, lógica e retórica) e Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). As disciplinas do Trivium são ligadas ao espírito, e as do Quadrivium, à matéria.

Atualmente, as universidades que têm departamentos de Artes Liberais utilizam outra divisão: as Humanidades (literatura, línguas, filosofia, as belas artes e a história); as Ciências Físicas e Biológicas e a Matemática; e, as Ciências Sociais [3]. Porém, a estrutura é similar: adota-se o método socrático, com turmas pequenas e um programa de leituras dos Grandes Livros, que se estende pelos quatro anos de graduação.

Agora que definimos o que entendemos por Artes Liberais, cabe tecer algumas observações sobre o “estado da arte”, o contexto social e histórico de nossa educação. Não é preciso ser um pessimista ou um fatalista para dizer que estamos em pleno processo de decadência cultural e intelectual, iniciado há cerca de quinhentos anos, mas que foi tão gradual que a percepção de suas conseqüências terríveis para a educação só foi nitidamente sentida no Século XX. Nesse sentido, a assim chamada “Era dos Extremos” apresenta mais continuidades do que rupturas.

Vários são os fatores, dos quais podemos destacar três:

I) Richard Weaver, na introdução de seu livro “Idéias tem Conseqüências”, aponta para um problema teórico surgido ainda no seio da Escolástica, em autores como William de Occam: a doutrina do nominalismo, baseada no ataque aos “universais”, aos quais foi negada a existência real, fazendo com que se tornassem “meros nomes servindo nossa conveniência”. Eis a raiz do empirismo moderno: “o resultado prático da filosofia nominalista é o banimento da realidade que é percebida pelo intelecto e o coroamento da realidade que é percebida somente pelos sentidos.” Em outras palavras, a substituição da “verdade” pelos “fatos” e das “palavras” pelas “coisas” (tese propagada por Francis Bacon) levou a uma perda do contato com a realidade, na medida em que negar tudo que transcende a existência e se ater aos “particulares” leva o ser humano a ter uma vida que é “uma prática sem teoria”.

II) O ideal da Educação Liberal foi perdendo força em prol da pedagogia moderna (inaugurada por Jean Comenius, no séc. XVII), que enfatizou mais o ensino do que a educação – aliás, é esta a base daquilo que denominamos Ensino Universal. Segundo José Monir Nasser, os ideais de “massificação do ensino” e a “uniformização do conteúdo” que norteiam tal concepção levaram a uma insensibilidade às individualidades e à automatização da aprendizagem, prejudicando consideravelmente a formação de valores humanos das crianças, jovens e até adultos. Ganhou-se em informação, mas perdeu-se em formação.

III) Esta guinada “pragmática” da educação, segundo Robert Hutchins, foi agravada no século XX pelas idéias de John Dewey e seu enfoque no ensino profissionalizante. A doutrina deste enfatizava que o sistema educacional deveria ter como objeto de atenção as vocações, os “meios de ganhar a vida”, na medida em que acreditava que um ensino mais voltado para o mercado de trabalho impediria o afastamento da filosofia do mundo ativo. Porém, Hutchins tem dúvidas de que um estudo das “ocupações profissionais” realmente ajuda os estudantes a adquirir a independência intelectual que uma cidadania democrática requer.

Felizmente, nas últimas décadas vêm sendo promovidas algumas iniciativas de resgate da Educação Liberal. Robert Hutchins e Mortimer Adler, professores da Universidade de Chicago, promoveram vários cursos baseados nos “Great Books”, e lançaram em 1952 uma coleção de 54 volumes com os maiores clássicos da literatura, ciência e filosofia do Ocidente. Nos anos seguintes, várias universidades americanas (por exemplo, o St. Mary’s College) criaram cursos voltados para as Artes Liberais, de cunho interdisciplinar.

No Brasil, a recente publicação do “Trivium” de Miriam Joseph (2008) é sinal de que, mesmo atrasados, estamos em sintonia com a redescoberta da Educação Liberal. Um dos expoentes da defesa das Artes Liberais é o intelectual Lucas Mafaldo, fundador do projeto Aristoi. De acordo com ele, “trata-se de apostar no poder da inteligência humana e de acreditar que este poder é maior quando iluminado pelas experiências e conhecimentos que já foram acumulados pelos nossos antepassados”.

Tal frase nos leva a uma questão fundamental para nossa discussão: por que ler os clássicos?

Entre os motivos que podem ser elencados, podemos destacar cinco. Em primeiro lugar, porque eles incentivam a imaginação e a sensibilidade poética. “As grandes narrativas poéticas mundiais levam o leitor a partilhar imaginativamente da rica e variada experiência de personagens individuais confrontados com problemas e condições de vida comuns a pessoas de todas as épocas.” (Miriam Joseph)

Segundo, porque “eles permitem que os alunos que sigam as mais distintas ocupações consigam manter um fundo cultural comum que favoreça o diálogo entre as diferentes áreas.” (Lucas Mafaldo) Além disso, os clássicos nos habilitam a participar ativamente dos debates culturais, cívicos e científicos; diante de uma discussão contemporânea, saberemos enquadrá-la no contexto maior de seu desenvolvimento histórico, e desta forma teremos uma melhor compreensão.

Em terceiro lugar, há a dimensão da formação humanística – que, para os gregos, é a “Paidéia”; para os alemães, a “Bildung”. Ler e estudar os clássicos aprimora a capacidade de autoconsciência de nossas potencialidades e limitações, além de nos permitir encontrar a nossa identidade como seres humanos. Temos muito a aprender sobre virtude, caráter, moralidade, amadurecimento e até mesmo sobre as mais profundas angústias existenciais por meio de obras como “Odisséia”, “A Divina Comédia”, “Hamlet”, “Dom Quixote” e “Os Irmãos Karamazov”.

Em quarto lugar, eles são base teórica permanente para a investigação social. Concordamos com Luis de Gusmão, que alega que os clássicos não são mera “psicologia pré-científica”, mas sim “um saber acerca das motivações, sentimentos e paixões dos seres humanos, cujo valor cognitivo se coloca acima da dúvida sensata.”

Por último, podemos ressaltar a relevância dos clássicos para a assim chamada “Grande Conversa”. Segundo Oakeshott, “como seres humanos, somos os herdeiros de uma longa conversa e o desenvolvimento intelectual pleno consiste na contribuição pára esta conversa universal onde todos os universos discursivos tendem a encontrar-se”. Hutchins acrescenta que a participação na “Conversa da Humanidade” passa pelos grandes livros, os quais são meios de compreender a nossa sociedade e a nós mesmos, pois eles contêm as grandes idéias que dominam nosso pensamento (Bem e Mal, liberdade, justiça, amor, alma, felicidade, democracia etc.). Podemos dizer que estes livros têm um valor e interesse permanentes, pois, mesmo após séculos, ainda têm algo a nos ensinar. Eles não contêm meramente a tradição, mas os grandes expoentes dela, cujos escritos são modelares, inspiradores e dotados de uma visão da grandeza.

Outro aspecto importante para entender o valor das Artes Liberais é aquilo que Olavo de Carvalho denomina “os patamares do conhecimento”. Para ele, cabe à educação transmitir certos ensinamentos que nos conscientizem da evolução da filosofia, da ciência e da arte, de tal forma que possamos participar do mundo das discussões sem estarmos ignorantes de distinções fundamentais. “A acumulação desses patamares de consciência”, segundo Olavo, “forma a série de condições que, num dado momento da evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está acontecendo em torno dele.” Afinal, de nada adianta emitir uma opinião sobre a sociedade se você não consegue pensar fora das categorias contemporâneas. É indispensável alcançar um ponto de vista superior, “um critério de julgamento que se sobrepõe às paixões e interesses em jogo naquele momento.” Do contrário, a norma utilizada apenas expressa um dos lados em conflito.

Também podemos aproveitar da palestra que Olavo de Carvalho deu em 2001 sobre este tema a noção de que a Educação Liberal é a preparação da alma para a maturidade. Em outras palavras, o ser humano maduro é o único apto a fazer o bem para o meio em que está, pois ele conhece o bem, é capaz de discerni-lo do mal. É lamentável que os educadores modernos estejam mais preocupados em fazer do aluno um meio e nunca a finalidade [4]. Nesse sentido, Olavo tem razão quando diz o seguinte: “o que o homem maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele, ele vai exercer a maturidade dele, não a minha.”

Leo Strauss, por sua vez, entende a Educação Liberal como uma espécie de alfabetização, uma educação na Cultura, que nos transmite um legado que nos habilita a entender melhor o mundo em que vivemos. Para Strauss, este é um “esforço necessário para se encontrar uma nobreza dentro da sociedade democrática de massa”, na medida em que traz à memória dos membros desta, “a grandeza humana”.

Antes de encerrarmos, cabe uma última observação, no que diz respeito à própria utilidade das Artes Liberais, antes que recaia sobre elas a velha crítica de seres “inúteis”. Para isso, podemos apelar ao próprio Trivium. Miriam Joseph define a Gramática como a arte de inventar e comunicar símbolos; a Lógica é a arte do pensamento; a Retórica, por sua vez, é a arte da comunicação. Ou seja, um estudo cuidadoso destas três disciplinas nos permite escrever melhor, pensar melhor e conversar melhor. Se a função da linguagem é comunicar pensamento, volição e emoção, então poderemos expressá-los com maior qualidade se entendermos os fundamentos da própria linguagem. Em outras palavras, o indivíduo que consegue combinar frases em parágrafos que apresentem coerência, unidade, clareza, vigor e beleza, além de emitir juízos a partir de conceitos bem fundamentados, está apto a realizar a comunicação por excelência.

O resgate do ideal educacional das Artes liberais e da Educação aos moldes clássicos é um dos propósitos do projeto Estudos Humanistas. Por meio de um estudo aprofundado e integrado das Humanidades, o que nosso projeto pretende oferecer à comunidade, na medida do possível, é a tentativa de reconstrução de uma cultura bem fundada, capaz de nos fazer ver a condição humana resolutamente e por inteiro. Lemos em 2010 e leremos em 2011 vários clássicos da literatura, política e filosofia ocidentais, sempre procurando debater e trazer as reflexões presentes em tais obras para o cotidiano, revelando a atualidade da mensagem de seus autores. Afinal, não custa repetir o que dissemos no início sobre “aprender a ser humano”: o propósito da educação e da própria Universidade é permitir tanto o autoconhecimento quanto a clara compreensão daquilo que nos faz dignamente humanos.



[1] Vide, p.ex., o Curso de Humanidades desenvolvido por Antonio Paim.

[2] Segundo Rosendo, no sentido etimológico de “escola”, que vem do grego “scholê”, esta palavra quer dizer ócio ou lazer.

[3] É possível questionar se realmente as Ciências Sociais são separadas das Humanidades. Mesmo que adotem métodos “científicos” e “empíricos”, elas não se furtam da compreensão e da interpretação das motivações dos atores sociais e políticos.

[4] Exemplos disso são as idéias de “função social da Universidade” e “educação para a paz e o desenvolvimento”.

maio 20, 2011

La Boétie e a Política da Obediência

Mini-curso sobre "O Discurso sobre a Servidão Voluntária" (La Boétie), realizado em 20 de Maio no CEM 02 Gama, em parceria com o Fórum Permanente de Estudantes (CESPE).

1. Biografia

- Étienne de La Boétie nasceu em Sarlat, no ano de 1530. Órfão, foi criado pelo tio, que era curador.

- Estudou Direito na Universidade de Orléans, que era um dos principais centros de estudos jusnaturalistas à época. Formou-se em 1553.

- Amigo de Michel de Montaigne, outro importante humanista francês. Como La Boétie não publicou nenhuma obra em vida, Montaigne herdou e compilou seus manuscritos.

- Seu "Discurso sobre a Servidão Voluntária" foi utilizado por huguenotes para a defesa da tolerância religiosa, em uma versão resumida e modificada, cujo título era "O Contra Um" (1577).

- Morreu com apenas 32 anos, em 1563, provavelmente vítima de uma peste que assolava a França.

2. Pontos principais da obra

- Há uma passividade generalizada perante o Estado. Cabe fazer uma tentativa de psicologia social: por que a população conduz tiranos ao poder?

- Demagogos utilizam o medo e a ordem como justificativas para o estabelecimento de ditaduras. A liberalidade e a propaganda ideológica são alguns dos meios empregados para obter o consentimento popular.

- Até que ponto a segurança é preferível a uma vida livre? A liberdade é um direito natural do homem, e deve ser defendida, legitimando uma resistência a governos tirânicos.

- O problema central da filosofia política é o mistério da obediência civil. Todo governo sustenta-se em um consentimento da maioria, seja esta silenciosa ou não. Em outras palavras, é um controle ideológico: as pessoas precisam acreditar que devem obedecer para que seja possível ao Estado exigir obediência. Qual seria, portanto, a estratégia mais adequada para impedir que o Estado se torne despótico?

- Lutar pela liberdade é se sacrificar pela manutenção da felicidade, evitando uma vida desagradável. A liberdade é um bem tão grande que, quando perdida, todos os males acontecem e os bens remanescentes são enfraquecidos, corrompidos pela servidão. Acima de tudo, basta querer ser livre para sê-lo.

- No combate, os livres disputam pelo melhor, cada qual pelo bem comum e por si, contribuindo tanto na derrota quanto na vitória. Já os subjugados perderam não só a liberdade, como também a valentia e a vivacidades. Os próprios bens que permanecem depois dela perdem o gosto e o sabor.

- Há três espécies de tiranos, de acordo com o meio pelo qual chegam ao poder: eleição do povo, força das armas e sucessão hereditária. Todos são cruéis e têm seus vícios, sendo impossível escolher qual representa um mal menor.

- A 1ª razão da servidão voluntária é o costume. É da natureza do homem querer conservar o hábito que lhe foi dado pela criação. Portanto, os homens servem de boa vontade porque nasceram servos e foram criados como tais. O natural se perde se não for cultivado – o que vale para a liberdade.

- Tiranos chegam a atribuir a si mesmos o status de divindades, treinando seu povo para adorá-los.

- Os tiranos têm o ardil de embrutecer os súditos com toda espécie de jogos (“ludi”). Teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores etc.: eis os atrativos da servidão. O "pão e circo" distraem o povo da opressão.

- Júlio César, infelizmente pouco criticado e muito exaltado até hoje, foi um exemplo clássico de "doçura venenosa" que revoga as leis e a liberdade; sua suposta humanidade foi vista como efeito amenizador de sua conduta ditatorial; chegaram a chamá-lo de Pai do Povo.

- Há povos que caem por dinheiro; em outros, a religião é o recurso dos tiranos (proteção e legitimação).

- A criação de cargos cria novos sustentáculos da tirania. Os servidores muitas vezes são piores que seus amos; são ambiciosos e bajuladores. Além disso, é uma forma de vida lamentável, pois instável e pouco segura para ambos os lados.

3. Interpretações

- Michel de Montaigne: La Boétie foi meu melhor amigo. Conheci-o graças a seu ensaio, “A Servidão Voluntária”, o qual ele escreveu ainda na adolescência, a fim de se exercitar em favor da liberdade e contra a tirania. Este ensaio há muito circula em mãos de gente séria, pois é cheio de nobreza e de argumentação tão sólida quanto possível.

- Prévost-Paradol: pinta-nos Montaigne, com um mesmo traço, no ensaio “Da Amizade”, a mais sólida amizade que os homens possam conceber e a amizade que o unia a La Boétie. Após a morte prematura do amigo, Montaigne deixa de publicar “A Servidão Voluntária” porque este livro serviu de texto aos que querem perturbar o Estado, sem saber se poderão torná-lo melhor.

A servidão consiste em ser afastado da liberdade de que se é capaz ou privado da que já se usufruiu. Diante da tal situação, o que La Boétie faz é um apelo à dignidade humana.

- François Chatêlet: o “Discurso da Servidão Voluntária” distingue-se por sua elevação de tom e por seu radicalismo, ao colocar uma questão crucial: por que existe obediência? O “Discurso” de La Boétie não visa um regime, o despotismo real, mas sim a nova forma política que está se impondo em seu século: o Estado como potência plena. Além disso, antecipa Wilhelm Reich ao levantar que o que é surpreendente não é que os povos se revoltem, mas que não se revoltem.

Pierre Clastres diz que a questão colocada por La Boétie é a mais subversiva de todas: espantar-se com a servidão voluntária é supor que a liberdade é possível. A partir disso, Clastres defende uma sociedade sem Estado: livre, igualitária e ociosa. Claude Lefort ressalta que a tirania atravessa a sociedade de lado a lado: a comunidade se reconhece no Um e aceita o comando dele, e é por meio da multiplicação desse comando que se constituem grupos que exercem o poder para e em nome do Um.

- Marilena Chauí: a idéia de um imenso espelho entre os governantes e a sociedade inteira reaparece no ensaio de La Boétie, mas com uma grande inovação: não é o tirano que cria uma sociedade tirânica, mas é a sociedade tirânica (a sociedade onde homens desejam a servidão) que produz o tirano, o seu espelho.

- Murray Rothbard: o método de La Boétie é especulativo, abstrato, dedutivo – o que contrasta com a argumentação legal e histórica de seus companheiros monarcômacos. Seus exemplos históricos são apenas ilustrações de princípios gerais da Antiguidade Clássica. Nesse sentido, parece-se com Maquiavel, mas enquanto este estava preocupado em como um príncipe se consolidava no poder, La Boétie discutia maneiras de depô-lo e assegurar assim a liberdade individual.

Seu insight fundamental é que toda tirania se sustenta no consentimento popular. Sendo assim, basta que as pessoas desejem ser livres para que o tirano seja deposto. Ao invés de se preocupar com o tiranicídio isolado, o autor defende algo mais radical e pacífico: a desobediência civil das massas.

O segredo da dominação, do apoio e da fundação da tirania é o estabelecimento de uma hierarquia de aliados subordinados, uma banda leal de empregados, juízes e burocratas. Tal “patronagem” forma uma pirâmide que permeia toda a sociedade.

As pessoas letradas representam uma ameaça ao tirano; daí seu interesse em suprimir a educação. Assim como analistas modernos do fenômeno do totalitarismo (p.ex., Hannah Arendt), La Boétie enfatiza a importância de uma elite educada que resiste e defende a liberdade contra os mitos e ilusões pregados pelo Estado.

Por fim, a importância dele também se estende ao problema da estratégia. La Boétie enfatiza a importância de os letrados denunciarem ao público a natureza e os procedimentos do Estado despótico. Um dos meios de praticar tal resistência pacífica é a recusa a se pagar impostos.

4. Influência da obra

- La Boétie pode ser considerado como um dos pioneiros da filosofia política na França.

- Monarcômacos: movimento de teóricos huguenotes sectários que justificava o tiranicídio, em defesa da “soberania popular”. Foram precursores das teorias de contrato social.

- Um dos primeiros advogados da desobediência civil e pacífica, séculos depois também defendida por Henry David Thoreau (“A Desobediência Civil”), Tolstoi, Ghandi, Dalai Lama e Martin Luther King.

- 1º filósofo político libertário do Ocidente, influenciou o movimento contemporâneo do Libertarianismo. Autores como Rothbard resgataram La Boétie para a crítica o Estado e a defesa da liberdade individual.

5. Bibliografia

CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier & PISIER-KOUCHNER, Évelyne. História das Idéias Políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 44 e 385.

LA BOÉTIE, Étienne de. “Discurso sobre a Servidão Voluntária”. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

_____________________ “The Politics of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude”. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2008.

MONTAIGNE, Michel de. “Ensaios” (vol. 1). São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 178.