3ª reunião do grupo de Estudos Humanistas, realizada em 30 de Abril.
1. BIOGRAFIA
- Alexis-Charles-Henri Clérel de Tocqueville nasceu em 29 de Julho de 1805, em Paris. Filho de uma família tradicional e legitimista, estudou na Faculdade de Direito de Paris, onde se formou em 1825.
- Aos 26 anos, em missão do governo francês, viajou junto com seu amigo Gustave de Beaumont para os Estados Unidos da América, para estudar o sistema penitenciário e carcerário de tal país. Seus relatos de viagem foram a base para o que viria a ser seu livro mais conhecido: “A Democracia na América”.
- Atuou no Parlamento francês durante cerca de vinte anos. Defendeu causas abolicionistas e o livre-comércio. Foi membro da Assembléia Constituinte de 1848, onde fez oposição aos socialistas. Chegou a ser ministro de Relações Exteriores durante alguns meses. Abandonou a política em 1851, após o golpe de Estado de Luís Bonaparte.
- Principais obras: “A Democracia na América” (1835-1840) e “O Antigo Regime e a Revolução” (1856).
- Faleceu aos 53 anos, em Abril de 1859, na cidade de Cannes.
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
- Jon Elster: Ambigüidade, tendência à especulação e linguagem vaga são três aspectos recorrentes na obra tocquevilliana. O autor entra em contradição freqüentemente, mas nunca é claro o suficiente para podermos atestar se ele está errado ou não. O escritor francês, comparado com outros sociólogos (Marx, Weber, Durkheim), é profundamente assistemático. Parte disso se deve a seu desprezo pelo racionalismo abstrato típico do século XVIII. Tocqueville, assim como Mill, é um dos poucos pensadores de sua época que escapou de certos “males” das ciências sociais: holismo (negação do individualismo metodológico, em prol de entidades maiores), organicismo (analogia entre sociedades com organismos biológicos), funcionalismo (explicar fenômenos por seus efeitos, e não causas) e teleologia (acreditar que a história tem um sentido e uma direção). Tocqueville baseia-se em microfundações, e demonstra em “A Democracia na América” uma imaginação sociológica das mais poderosas e criativas; por exemplo, em seus “mecanismos causais exportáveis”.
- José Guilherme Merquior: Tocqueville possuía uma preocupação sincera com a base moral (especialmente a religiosa) das instituições liberais. Distinção entre egoísmo (vício atemporal) e individualismo (falta de virtude cívica nas sociedades democráticas). Aristocrático, ele sentia desprezo pelas classes médias, portadoras naturais desse individualismo. Cultivava um temor à doce servidão do Estado paternalista, assim como esperanças no autogoverno local e de associação voluntária.Talvez Tocqueville tenha sido o último arroubo do liberalismo cívico.
- Paulo Kramer: Tocqueville era um aristocrata por instinto e democrata por preferência intelectual. Estava preocupado com o homo democraticus e sua exclusiva concentração em seus interesses privados e o conseqüente relaxamento das virtudes cívicas. Concebia a tarefa de historiador como “pedagogia da liberdade”; ou seja, uma visão histórica que privilegiasse o livre-arbítrio. Comparação com Weber – ambos conferem supremo valor à liberdade, à independência ética e intelectual, à autodeterminação humana e ao senso de responsabilidade, além de abominarem a uniformização, a vulgaridade e a servidão voluntária da sociedade de massas. O francês, que escreveu meio século antes do alemão, é mais otimista quanto ao futuro desta sociedade democrática.
- José Osvaldo de Meira Penna: o pensador francês receava a emergência de uma sociedade de massas, manipulada por uma nova classe de ideólogos e burocratas, e governada por um Estado que impõe a tirania de uma maioria demagógica. Não era saudável que a sociedade exagerasse seus cuidados sobre o indivíduo, pois cada um é administrador mais competente dos seus interesses. Uma das análises mais certeiras de Tocqueville foi a constatação de que a democracia é frágil perante os Estados despóticos, no âmbito da política externa e defesa militar. Porém, ela possui virtudes insuperáveis para assegurar o desenvolvimento, a justiça e o bem-estar dos povos. Comparação com Dostoiévski: ambos se preocupam com os excessos do igualitarismo jacobino, assim como seu caráter místico; o Grande Inquisidor criado por Ivan Karamázov fala da promessa de felicidade terrena, com “liberdade igual” e segurança, mas que não passa de uma “gaiola dourada”.
3. INTERPRETAÇÃO
- Influência dos fatores naturais: isolada pelo Oceano Atlântico da Europa, os americanos não precisam se preocupar com rivalidades com vizinhos e guerras. Com isso, a glória militar ainda não exerce grande força sobre o espírito do povo.
- Origem dos anglo-americanos: imigração forte de seitas religiosas perseguidas no Reino Unido – desde os Quakers e puritanos até os católicos ingleses. Assim que chegaram nas terras do Novo Mundo, estabeleceram um contrato social. Estavam movidos pela união íntima do espírito religioso com o espírito de liberdade.
- Situação social: as leis de sucessão, ao abolirem o direito de primogenitura (e promoverem a repartição igual dos bens entre os filhos), geraram uma contínua divisão das propriedades, minando assim o apego aristocrático à terra; em outras palavras, destrói a ligação íntima que existia entre o espírito de família e a conservação da terra”. Como conseqüência política desta medida legislativo, temos o aumento da igualdade de condições, inclusive de inteligência e força; há, portanto, um enfraquecimento do “status”, mesmo no sul do país. Felizmente, essa equalização não tornou os EUA mais fracos e despóticos, em razão do princípio de soberania do povo.
- Instituições: pode-se destacar as instituições comunais, a autonomia dos Estados e a esfera de atuação limitada (embora poderosa) da União. A Constituição Federal gerou um tal equilíbrio de poderes que, simultaneamente, fortaleceu a União e manteve a autonomia dos Estados. A sociedade civil também tem instâncias importantes, como as associações e a imprensa livre.
- Valores aristocráticos x democráticos: há uma boa definição de ambos no capítulo VI da 2ª parte. De um lado, preferir a aristocracia caso se prefira “dar ao espírito humano certa elevação, (...) inspirar aos homens uma espécie de desprezo pelos bens materiais, (...), fazer nascer ou conservar convicções profundas e preparar grandes devotamentos (...), polir os costumes, elevar os modos, fazer brilhar as artes (...), poesia, ruído, glória (...), organizar um povo de maneira a agir fortemente sobre todos os outros”, destinando-o “a tentar grandes empreendimentos e, seja qual for o resultado de seus esforços, a deixar um traço imenso na história”. Do outro, constituir o governo da democracia se o objetivo for “encaminhar a atividade intelectual e moral do homem para as necessidades da vida material e empregá-la para produzir o bem-estar; se a razão nos parece mais proveitosa aos homens que o gênio; se o nosso objetivo de modo nenhum é criar virtudes heróicas, mas hábitos pacíficos; se antes queremos ver vícios que crimes, e se preferimos encontrar menor número de grandes ações com a condição de encontrar menos ofensas; se, em vez de agir no seio de uma sociedade brilhante, basta-nos viver no meio de uma sociedade próspera; se, afinal, o objetivo principal de um governo de modo nenhum (...) é dar a todo o corpo da nação a maior força ou a maior glória possível, mas fornecer a cada um dos indivíduos que a compõe a maior parcela de bem-estar e evitar-lhe maior miséria”.
- Tirania da maioria: além de aumentar a instabilidade legislativa e ser o maior perigo à perpetuação da república americana, a onipotência da maioria exerce poder profundo até sobre o pensamento. “Dentro dos seus limites, o escritor é livre; mas infeliz daquele que ousar ultrapassá-los. (...) O senhor não diz mais: ‘Pensareis como eu ou morrereis’. Diz apenas: ‘Sois livre de não pensar como eu; vossa vida, vossos bens, tudo vos fica; mas, desde hoje, sois um estranho entre nós’”. Nessa pressão social também reside a falta de grandes escritores na América: “A Inquisição jamais pôde impedir que circulassem na Espanha livros contrários à religião da maioria. O império da maioria fez mais do que isso nos Estados Unidos: acabou até com a idéia de publicá-los”.
- “Checks and balances”: a ausência de centralização administrativa (vontade soberana não é uma, e precisa passar pelas comunas e condados), a influência dos juristas (único segmento de tendência aristocrática que goza de aprovação popular, são os maiores defensores do espírito legal e do respeito às leis) e a instituição principalmente política do júri (sua diversificada composição social lhe dá um caráter de educação cívica) são três mecanismos que impediram o avanço da tirania da maioria na América. Tocqueville também ressalta a importância das associações, da divisão de poderes e do federalismo. O desbravamento de fronteiras, somado ao valor dado ao bem-estar material pelos americanos, facilitam a extensão territorial do país, assim como a manutenção da democracia.
- O papel dos costumes e da religião: o cristianismo demonstrou seu caráter democrático e republicano, muitas vezes esquecido, na colonização da América. “O despotismo pode governar sem a fé, mas a liberdade não”. A religião modera a paixão pela inovação; possui, portanto, grande utilidade política – o que justifica, por exemplo, as missões de sacerdotes enviadas para o Oeste (papel da moral em gerar coesão social).
- Duas potências: “Dois grandes povos, (...) tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para o mesmo fim”: a Rússia despótica e a América democrática. “Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização com todas as suas armas; por isso, as conquistas do americano se firmam com o arado do lavrador, as do russo com a espada do soldado”.
- Retórica e estilística: já na Introdução, há um trecho particularmente curioso, proferido enquanto Tocqueville falava da força irresistível da democracia nos tempos modernos: “Não é necessário que fale o próprio Deus para que descubramos sinais certos da Sua vontade; basta examinar a marcha habitual da natureza e a tendência contínua dos acontecimentos; sem que o Criador eleve a voz, sei que os astros seguem no espaço órbitas traçadas pela Sua mão”. Eis um recurso retórico para expressar a importância de se estar atento ao fenômeno democrático.
- Ambigüidades do texto: o termo “democracia” é utilizado com três sentidos diferentes: o regime político propriamente dito, a sociedade americana e a sociedade francesa. O autor é autoconsciente de seus paradoxos, como no seguinte trecho: “Tenho por ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de govenro, a maioria de um povo tem o direito de tudo fazer, e, no entanto, situo nas vontades da maioria a origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo?” (2ª Parte, cap. VII)
- Tradição filosófica: influenciado por Aristóteles (análise multidisciplinar dos fenômenos sociais), Montesquieu (ênfase na cultura e nas virtudes típicas de cada regime político) e Rousseau (valorização da democracia e da virtude cívica).
- Em relação a seu espectro ideológico, pode-se dizer que evoca valores conservadores (tradicionalismo), liberais (culto à sociedade comercial e aos progressos trazidos pelo livre mercado), cristãos (livre-arbítrio) e republicanos (relevância participação dos cidadãos na vida pública).
4. INFLUÊNCIAS
- Cultura: Tocqueville tornou-se um ícone cultural para os Estados Unidos. Muitas vezes foi tomado como profeta, pois em seus escritos teria prenunciado a Guerra Civil, a abolição da escravatura, o avanço do Estado previdenciário e a Guerra Fria.
- Filosofia: segundo Stuart Mill, ele escreveu “o primeiro livro filosófico sobre a democracia, tal como se manifesta na sociedade moderna”. Influenciou o conservadorismo moderno, o liberalismo republicano e também doutrinas social-liberais.
- História: influência para historiadores baseados no individualismo metodológico e no estilo clássico. Os herdeiros de Tocqueville, portanto, faziam uma historiografia centrada nas idéias e ações de individualidades excepcionais.
- Sociologia: Raymond Aron é um dos que acreditam que ele foi um dos primeiros sociólogos, assim como o pioneiro no estudo da democracia e dos dilemas da igualdade. A abordagem “politeísta de valores” de Max Weber tem ecos tocquevillianos.
- Teoria Política: cientistas políticos como Robert Putnam, em suas formulações sobre o capital social e o papel da cultura cívica, evocam a importância que Tocqueville dava para o estudo conjunto de instituições e costumes.
1. BIOGRAFIA
- Alexis-Charles-Henri Clérel de Tocqueville nasceu em 29 de Julho de 1805, em Paris. Filho de uma família tradicional e legitimista, estudou na Faculdade de Direito de Paris, onde se formou em 1825.
- Aos 26 anos, em missão do governo francês, viajou junto com seu amigo Gustave de Beaumont para os Estados Unidos da América, para estudar o sistema penitenciário e carcerário de tal país. Seus relatos de viagem foram a base para o que viria a ser seu livro mais conhecido: “A Democracia na América”.
- Atuou no Parlamento francês durante cerca de vinte anos. Defendeu causas abolicionistas e o livre-comércio. Foi membro da Assembléia Constituinte de 1848, onde fez oposição aos socialistas. Chegou a ser ministro de Relações Exteriores durante alguns meses. Abandonou a política em 1851, após o golpe de Estado de Luís Bonaparte.
- Principais obras: “A Democracia na América” (1835-1840) e “O Antigo Regime e a Revolução” (1856).
- Faleceu aos 53 anos, em Abril de 1859, na cidade de Cannes.
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
- Jon Elster: Ambigüidade, tendência à especulação e linguagem vaga são três aspectos recorrentes na obra tocquevilliana. O autor entra em contradição freqüentemente, mas nunca é claro o suficiente para podermos atestar se ele está errado ou não. O escritor francês, comparado com outros sociólogos (Marx, Weber, Durkheim), é profundamente assistemático. Parte disso se deve a seu desprezo pelo racionalismo abstrato típico do século XVIII. Tocqueville, assim como Mill, é um dos poucos pensadores de sua época que escapou de certos “males” das ciências sociais: holismo (negação do individualismo metodológico, em prol de entidades maiores), organicismo (analogia entre sociedades com organismos biológicos), funcionalismo (explicar fenômenos por seus efeitos, e não causas) e teleologia (acreditar que a história tem um sentido e uma direção). Tocqueville baseia-se em microfundações, e demonstra em “A Democracia na América” uma imaginação sociológica das mais poderosas e criativas; por exemplo, em seus “mecanismos causais exportáveis”.
- José Guilherme Merquior: Tocqueville possuía uma preocupação sincera com a base moral (especialmente a religiosa) das instituições liberais. Distinção entre egoísmo (vício atemporal) e individualismo (falta de virtude cívica nas sociedades democráticas). Aristocrático, ele sentia desprezo pelas classes médias, portadoras naturais desse individualismo. Cultivava um temor à doce servidão do Estado paternalista, assim como esperanças no autogoverno local e de associação voluntária.Talvez Tocqueville tenha sido o último arroubo do liberalismo cívico.
- Paulo Kramer: Tocqueville era um aristocrata por instinto e democrata por preferência intelectual. Estava preocupado com o homo democraticus e sua exclusiva concentração em seus interesses privados e o conseqüente relaxamento das virtudes cívicas. Concebia a tarefa de historiador como “pedagogia da liberdade”; ou seja, uma visão histórica que privilegiasse o livre-arbítrio. Comparação com Weber – ambos conferem supremo valor à liberdade, à independência ética e intelectual, à autodeterminação humana e ao senso de responsabilidade, além de abominarem a uniformização, a vulgaridade e a servidão voluntária da sociedade de massas. O francês, que escreveu meio século antes do alemão, é mais otimista quanto ao futuro desta sociedade democrática.
- José Osvaldo de Meira Penna: o pensador francês receava a emergência de uma sociedade de massas, manipulada por uma nova classe de ideólogos e burocratas, e governada por um Estado que impõe a tirania de uma maioria demagógica. Não era saudável que a sociedade exagerasse seus cuidados sobre o indivíduo, pois cada um é administrador mais competente dos seus interesses. Uma das análises mais certeiras de Tocqueville foi a constatação de que a democracia é frágil perante os Estados despóticos, no âmbito da política externa e defesa militar. Porém, ela possui virtudes insuperáveis para assegurar o desenvolvimento, a justiça e o bem-estar dos povos. Comparação com Dostoiévski: ambos se preocupam com os excessos do igualitarismo jacobino, assim como seu caráter místico; o Grande Inquisidor criado por Ivan Karamázov fala da promessa de felicidade terrena, com “liberdade igual” e segurança, mas que não passa de uma “gaiola dourada”.
3. INTERPRETAÇÃO
- Influência dos fatores naturais: isolada pelo Oceano Atlântico da Europa, os americanos não precisam se preocupar com rivalidades com vizinhos e guerras. Com isso, a glória militar ainda não exerce grande força sobre o espírito do povo.
- Origem dos anglo-americanos: imigração forte de seitas religiosas perseguidas no Reino Unido – desde os Quakers e puritanos até os católicos ingleses. Assim que chegaram nas terras do Novo Mundo, estabeleceram um contrato social. Estavam movidos pela união íntima do espírito religioso com o espírito de liberdade.
- Situação social: as leis de sucessão, ao abolirem o direito de primogenitura (e promoverem a repartição igual dos bens entre os filhos), geraram uma contínua divisão das propriedades, minando assim o apego aristocrático à terra; em outras palavras, destrói a ligação íntima que existia entre o espírito de família e a conservação da terra”. Como conseqüência política desta medida legislativo, temos o aumento da igualdade de condições, inclusive de inteligência e força; há, portanto, um enfraquecimento do “status”, mesmo no sul do país. Felizmente, essa equalização não tornou os EUA mais fracos e despóticos, em razão do princípio de soberania do povo.
- Instituições: pode-se destacar as instituições comunais, a autonomia dos Estados e a esfera de atuação limitada (embora poderosa) da União. A Constituição Federal gerou um tal equilíbrio de poderes que, simultaneamente, fortaleceu a União e manteve a autonomia dos Estados. A sociedade civil também tem instâncias importantes, como as associações e a imprensa livre.
- Valores aristocráticos x democráticos: há uma boa definição de ambos no capítulo VI da 2ª parte. De um lado, preferir a aristocracia caso se prefira “dar ao espírito humano certa elevação, (...) inspirar aos homens uma espécie de desprezo pelos bens materiais, (...), fazer nascer ou conservar convicções profundas e preparar grandes devotamentos (...), polir os costumes, elevar os modos, fazer brilhar as artes (...), poesia, ruído, glória (...), organizar um povo de maneira a agir fortemente sobre todos os outros”, destinando-o “a tentar grandes empreendimentos e, seja qual for o resultado de seus esforços, a deixar um traço imenso na história”. Do outro, constituir o governo da democracia se o objetivo for “encaminhar a atividade intelectual e moral do homem para as necessidades da vida material e empregá-la para produzir o bem-estar; se a razão nos parece mais proveitosa aos homens que o gênio; se o nosso objetivo de modo nenhum é criar virtudes heróicas, mas hábitos pacíficos; se antes queremos ver vícios que crimes, e se preferimos encontrar menor número de grandes ações com a condição de encontrar menos ofensas; se, em vez de agir no seio de uma sociedade brilhante, basta-nos viver no meio de uma sociedade próspera; se, afinal, o objetivo principal de um governo de modo nenhum (...) é dar a todo o corpo da nação a maior força ou a maior glória possível, mas fornecer a cada um dos indivíduos que a compõe a maior parcela de bem-estar e evitar-lhe maior miséria”.
- Tirania da maioria: além de aumentar a instabilidade legislativa e ser o maior perigo à perpetuação da república americana, a onipotência da maioria exerce poder profundo até sobre o pensamento. “Dentro dos seus limites, o escritor é livre; mas infeliz daquele que ousar ultrapassá-los. (...) O senhor não diz mais: ‘Pensareis como eu ou morrereis’. Diz apenas: ‘Sois livre de não pensar como eu; vossa vida, vossos bens, tudo vos fica; mas, desde hoje, sois um estranho entre nós’”. Nessa pressão social também reside a falta de grandes escritores na América: “A Inquisição jamais pôde impedir que circulassem na Espanha livros contrários à religião da maioria. O império da maioria fez mais do que isso nos Estados Unidos: acabou até com a idéia de publicá-los”.
- “Checks and balances”: a ausência de centralização administrativa (vontade soberana não é uma, e precisa passar pelas comunas e condados), a influência dos juristas (único segmento de tendência aristocrática que goza de aprovação popular, são os maiores defensores do espírito legal e do respeito às leis) e a instituição principalmente política do júri (sua diversificada composição social lhe dá um caráter de educação cívica) são três mecanismos que impediram o avanço da tirania da maioria na América. Tocqueville também ressalta a importância das associações, da divisão de poderes e do federalismo. O desbravamento de fronteiras, somado ao valor dado ao bem-estar material pelos americanos, facilitam a extensão territorial do país, assim como a manutenção da democracia.
- O papel dos costumes e da religião: o cristianismo demonstrou seu caráter democrático e republicano, muitas vezes esquecido, na colonização da América. “O despotismo pode governar sem a fé, mas a liberdade não”. A religião modera a paixão pela inovação; possui, portanto, grande utilidade política – o que justifica, por exemplo, as missões de sacerdotes enviadas para o Oeste (papel da moral em gerar coesão social).
- Duas potências: “Dois grandes povos, (...) tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para o mesmo fim”: a Rússia despótica e a América democrática. “Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização com todas as suas armas; por isso, as conquistas do americano se firmam com o arado do lavrador, as do russo com a espada do soldado”.
- Retórica e estilística: já na Introdução, há um trecho particularmente curioso, proferido enquanto Tocqueville falava da força irresistível da democracia nos tempos modernos: “Não é necessário que fale o próprio Deus para que descubramos sinais certos da Sua vontade; basta examinar a marcha habitual da natureza e a tendência contínua dos acontecimentos; sem que o Criador eleve a voz, sei que os astros seguem no espaço órbitas traçadas pela Sua mão”. Eis um recurso retórico para expressar a importância de se estar atento ao fenômeno democrático.
- Ambigüidades do texto: o termo “democracia” é utilizado com três sentidos diferentes: o regime político propriamente dito, a sociedade americana e a sociedade francesa. O autor é autoconsciente de seus paradoxos, como no seguinte trecho: “Tenho por ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de govenro, a maioria de um povo tem o direito de tudo fazer, e, no entanto, situo nas vontades da maioria a origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo?” (2ª Parte, cap. VII)
- Tradição filosófica: influenciado por Aristóteles (análise multidisciplinar dos fenômenos sociais), Montesquieu (ênfase na cultura e nas virtudes típicas de cada regime político) e Rousseau (valorização da democracia e da virtude cívica).
- Em relação a seu espectro ideológico, pode-se dizer que evoca valores conservadores (tradicionalismo), liberais (culto à sociedade comercial e aos progressos trazidos pelo livre mercado), cristãos (livre-arbítrio) e republicanos (relevância participação dos cidadãos na vida pública).
4. INFLUÊNCIAS
- Cultura: Tocqueville tornou-se um ícone cultural para os Estados Unidos. Muitas vezes foi tomado como profeta, pois em seus escritos teria prenunciado a Guerra Civil, a abolição da escravatura, o avanço do Estado previdenciário e a Guerra Fria.
- Filosofia: segundo Stuart Mill, ele escreveu “o primeiro livro filosófico sobre a democracia, tal como se manifesta na sociedade moderna”. Influenciou o conservadorismo moderno, o liberalismo republicano e também doutrinas social-liberais.
- História: influência para historiadores baseados no individualismo metodológico e no estilo clássico. Os herdeiros de Tocqueville, portanto, faziam uma historiografia centrada nas idéias e ações de individualidades excepcionais.
- Sociologia: Raymond Aron é um dos que acreditam que ele foi um dos primeiros sociólogos, assim como o pioneiro no estudo da democracia e dos dilemas da igualdade. A abordagem “politeísta de valores” de Max Weber tem ecos tocquevillianos.
- Teoria Política: cientistas políticos como Robert Putnam, em suas formulações sobre o capital social e o papel da cultura cívica, evocam a importância que Tocqueville dava para o estudo conjunto de instituições e costumes.