1. Biografia
- Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde nasceu em 16 de Outubro de 1854, em Dublin. Filho de intelectuais irlandeses, desde a infância teve uma educação refinada. Estudou nas universidades de Trinity e Oxford, sendo que na última conheceu Walter Pater, cujos estudos sobre a Renascença, que enfatizavam o sensualismo, exerceram profunda influência sobre Wilde.
- Participou do movimento esteticista, que defendia visões subversivas sobre arte e sociedade. Aos 30 anos, casou-se com Constance Lloyd. Trabalhou como crítico de arte na década de 1880.
- Ganhou fama inicialmente por sua oratória sarcástica e envolvente e por seus gostos e vestes extravagantes. Porém, suas peças de teatro e contos começaram a ser reconhecidos. Seu único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, foi um sucesso comercial. Wilde foi um artista que (deliberadamente) chocou a sociedade vitoriana, e também obteve popularidade em Paris.
- A partir de 1891, desenvolveu um relacionamento com Alfred Douglas, 16 anos mais jovem que ele. Foi um caso turbulento, com muitas separações e reconciliações. Incentivado por “Bosie”, o autor envolveu-se com gays prostitutos do underground londrino.
- Acusado de sodomia pelo marquês de Queensbery, pai de Douglas, foi levado a julgamento. A vida íntima de Oscar Wilde foi devassada, com provas (cartas, principalmente) expostas ao longo do tribunal. Foi preso em 1895, condenado a dois anos de trabalhos forçados. Depois que foi libertado, o escritor exilou-se em Paris. Faleceu em 30 de Novembro de 1900, vítima de meningite cerebral.
2. Interpretação
- O prefácio de “O Retrato de Dorian Gray” é tido como um manifesto artístico, em defesa daquilo que, à época, chamava-se esteticismo ou dandismo. “O artista é criador de beleza. (...) Não existem livros morais nem livros imorais. Um livro ou é bem ou mal escrito. (...) Toda arte é essencialmente inútil.” (pp.7-9). Com isso, o autor dirige-se ao leitor proponda uma ética diferenciada em sua obra, a qual coloca a beleza como prioridade. Seu livro, portanto, não deveria ser avaliado quanto à edificação (ensinar o Bem, pautar-se por valores tidos como elevados), mas quanto à forma (levar a uma experiência artisticamente agradável e prazerosa). Além do mais, aquilo que é inutilidade na perspectiva burguesa não o é para o esteta.
- Dorian Gray: um jovem de extraordinária beleza, que, assim como o Narciso mítico, não era autoconsciente dela. Porém, quando seu amigo pintor Basil produz um quadro para o qual ele foi modelo, Dorian começa a entender todos os elogios e bajulações que costumavam lhe fazer. Além disso, foi profundamente inspirado pelas idéias de Lorde Henry, como no seu ode à juventude. Dali em diante, torna-se um autêntico narcisista. Ao longo da obra, torna-se progressivamente orgulhoso e preocupado apenas com seus próprios prazeres e caprichos. Seu relacionamento curto e traumático com Sibyl Vane é um exemplo disso. “Sim - gritou ele -, matou o meu amor. Costumava excitar a minha imaginação. Agora nem sequer excita a minha curiosidade. Não exerce qualquer efeito em mim. Eu amava-a porque era maravilhosa, porque possuía gênio e inteligência, porque realizava os sonhos dos grandes poetas e dava forma e substância às sombras da arte. Agora deitou tudo a perder. É fútil e estúpida. Meu Deus! Que louco fui em amá-la!” (p. 138)
- Lorde Henry: o cinismo em pessoa. Leva uma vida de nobre ocioso e que só preocupa com o “supérfluo”, e é auto-indulgente quanto a isso. Está sempre criticando acidamente os hábitos e costumes de sua época, marcada pela hipocrisia (por exemplo, na separação radical entre vida pública e privada e na filantropia); Henry Wotton preza pela sinceridade. Talvez seja o personagem de perfil mais próximo ao do próprio Wilde. O seguinte diálogo demonstra sua predileção por se expressar em aforismos:
“- Não gosta então do seu país? - perguntou-lhe.
- É nele que vivo.
- Para melhor o censurar.
- Quer que eu assuma o veredicto da Europa sobre ele? - inquiriu.
- Que dizem eles de nós?
- Que Tartufo emigrou para Inglaterra e abriu uma loja.
- A frase é de sua autoria, Harry?
- Ofereço-lha.
- Não poderia usá-la. É demasiado verdadeira.
- Não tenha receio. Os nossos compatriotas nunca reconhecem uma descrição.
- São práticos.
- São mais astutos do que práticos. Quando fazem o balanço no livro razão, saldam a estupidez com a fortuna e o vício com a hipocrisia.
- Mesmo assim, temos feito grandes coisas.
- As grandes coisas é que foram lançadas sobre nós, Gladys.
- Temos carregado com esse fardo.
- Somente até à Bolsa de Valores.
Ela fez um aceno negativo com a cabeça.
- Acredito na raça - exclamou.
- Representa a sobrevivência do esforço.
- Tem evoluído.
- A decadência seduz-me mais.
- E a Arte? - perguntou ela.
- É uma doença.
- O Amor?
- Uma ilusão.
- A Religião?
- O moderno substituto da Crença.
- Você é um céptico.
- Nunca! O cepticismo é o começo da Fé.
- Você o que é?
- Definir é limitar.” (p. 297-298)
- Basil Hallward: apaixonado por Dorian, ele encontrou no rapaz uma fonte de inspiração artística. Chega mesmo a afirmar que revelou muito de si mesmo no retrato que fez de D. Gray. Dos três amigos, é o mais moralista, porque acredita que o Bem e o Belo não podem ser separados. Preocupado com os arroubos imorais de Harry (apelido de Henry Wotton), lamenta-se quando Dorian se torna uma pessoa cada vez mais insensível e arrogante. “Adorei-o demasiado. Fui castigado. E você adorou demasiado a si mesmo. Fomos ambos castigados” (p. 241)
- O retrato: Dorian indigna-se quando vê a obra pronta, pois é tão bela que ele logo nota que ela continuará sempre encantadora, enquanto ele irá envelhecer. Sendo assim, em uma espécie de “reza”, ele pede para que o quadro sofra as marcas do tempo, enquanto que ele continuaria sempre jovem e esbelto. Porém, ao longo da obra, D. Gray percebe que, toda vez que comete algo pecaminoso, o quadro reflete isso: por exemplo, um sorriso cruel, rugas, desbotamento dos cabelos etc. Muitos comparam esta trama com a venda da alma ao diabo presente na lenda do Fausto ou mesmo com romances góticos como “O Médico e o Monstro” (Stevenson). “O retrato, quer mudasse ou não, tornar-se-ia o símbolo de sua consciência” (p. 144)
- Os diálogos: sempre marcados pelo deboche e sarcasmo dos personagens. Ocupam a maior parte do livro, e revelam mais sobre a história do que as descrições do narrador.
“O político olhou para ele intensamente.
- Que transformações propõe então? - perguntou.
Lord Henry riu-se.
- Não desejo mudar nada em Inglaterra, excepto o tempo - respondeu ele. - Satisfaz-me bastante a reflexão filosófica. Mas, como o século XIX abriu falência devido a um excesso de dispêndio com a simpatia, eu sugeria que recorrêssemos à Ciência para nos organizar. A vantagem das emoções é a de nos extraviar, e a vantagem da Ciência é a de não ter emoções.
- Mas nós temos responsabilidades tão graves - arriscou Mrs.
Vandeleur, timidamente.
- Terrivelmente graves - repetiu, como um eco, Lady Agatha.
Lorde Henry dirigiu um olhar para Mr. Erskine.
- A Humanidade leva-se a si própria demasiado a sério. Esse é o pecado original do mundo. Se o homem da caverna tivesse aprendido a rir, a História teria sido diferente.
- O senhor, realmente, deu-me ânimo - interveio a duquesa, com gorjeios na voz. - Tive sempre uma certa sensação de culpa quando vinha ver a sua querida tia, pois não me interessa absolutamente nada o East End. Futuramente, poderei olhá-la de frente sem corar.
- Um certo rubor fica muito bem, duquesa - observou Lorde Henry.
- Só quando somos jovens - retorquiu ela. - Quando uma senhora de idade como eu fica corada é mau sinal. Ai, Lorde Henry, se me pudesse dizer como ficar jovem outra vez.
Ele ficou a pensar por uns instantes.
- Consegue lembrar-se de algum erro grave que tenha cometido nos seus tempos de juventude, duquesa? - perguntou-lhe ele, olhando-a do outro lado da mesa.
- Muitos, receio bem - exclamou ela.
- Então cometa-os outra vez - disse ele, gravemente. – Para se voltar à juventude, basta que se repitam as mesmas loucuras.
- Que teoria deliciosa! - exclamou ela. - Tenho de pô-la em prática.
- Que perigosa teoria! - foram as palavras saídas dos lábios estreitamente apertados de Sir Thomas.” (p. 66 e 69)
- Aristocratismo anárquico: o aproxima-se de Nietzsche ao ter posições simultaneamente aristocráticas (desprezo por doutrinas sociais e a própria questão da pobreza, tida como esteticamente desagradável) e rebeldes em relação ao “status quo” burguês. As opiniões políticas do autor revelam isso nitidamente. Em “A Alma do Homem sob o Socialismo”, ele apresenta uma visão anarquista da ideologia socialista, enfatizando elementos individualistas, incomuns nas versões marxista e fabiana, e elitistas. Enfim, algo como um “socialismo aristocrático”. Para que haja um livre e pleno desenvolvimento das capacidades humanas, certas instituições burguesas (como o casamento e a propriedade) deveriam ser abolidas.
- Os crimes: o protagonista sente pouca ou nenhuma culpa quando, por exemplo, descobre do suicídio de Sibyl ou quando assassina Basil. Esta corrupção é carregada de auto-indulgência e fascinação pelo moralmente reprovável. “Havia momentos em que o mal aparecia como um dos meios de realizar a sua concepção do belo” (p. 223).
- Ética e Estética: embora seja claro que Wilde pregue o relativismo moral, por estar em desacordo com os costumes vigentes em seu contexto social e histórico, não se pode dizer que ele também relativize a ética. Porém, o autor parece buscar uma nova concepção.
Enquanto a filosofia alemã (Schiller, por exemplo) via na estética uma doutrina teórica (dar sensibilidade à razão e vice-versa, permitindo a abertura a todas as possibilidades, o que seria fundamental para a própria faculdade de juízo), os franceses e ingleses promoveram um movimento artístico chamado esteticismo. Este valorizava a beleza como supremo ideal e pregava duplicidade (viver uma vida dupla, sem se sentir pressionado a minar personalidades latentes), influência (aprender com algo ou alguém a perder a inocência e a inexperiência) e, em última instância, a recusa da idéia de responsabilidade, pois um indivíduo, se cometeu algo tipo como reprovável, não deve se sentir culpado por seus atos.
Ou seja, ao contrário dos gregos (que viam a ética e a estética como indissociáveis) e dos cristãos (que, pela própria valorização da alma em detrimento da matéria, colocavam o Bem como mais importante que o Belo), os esteticistas defendem que a beleza pode contrariar o que é considerado valoroso, justo e correto. Porém, os contos wildeanos, de teor moralizante, voltam ao ideal grego de junção de ambas. Portanto, por mais que as idéias e as condutas do autor sejam moralmente controversas à sua época, isso não quer dizer que ele esteja abolindo noções éticas, mas sim defendendo que o Belo ganha papel primordial nelas – mesmo que a custo de prejudicar outras regras de conduta igualmente (ou até mais) importantes.
- Hedonismo: concebe o prazer como o único valor intrínseco, o que justifica a busca que tudo aquilo que dê o mínimo de dor e o máximo de gozo. Defendido por Henry, praticado por Dorian. Propõe viver a vida ao extremo, pois a juventude é finita, e o melhor a se fazer é aproveitar todas as possibilidades e prazeres oferecidos pela vida. Com isso, não há restrições para a busca de tudo aquilo que é tido como pecado. O protagonista, seguindo tal filosofia de vida, dedica-se ao luxo e à luxúria.
“Sim, deveria haver, como profetizara Lord Henry, um novo hedonismo que recriasse a vida e a salvasse desse austero e sombrio puritanismo que, curiosamente, está de novo em voga nos nossos dias. (...) Deveria (...) ensinar o homem a concentrar-se nos momentos da vida, visto ela ser um breve momento.” (p. 200)
- Hipocrisia ou arrependimento? No último capítulo, aliviado pela morte de James Vane, que pretendia vingar a irmã Sibyl, ele parece resoluto a praticar boas ações. Porém, permanece-lhe a dúvida se realmente ele mudou ou se tal atitude não passa de vaidade. Seu “suicídio” (ele enfia uma faca no quadro-retrato) inverte os papéis: seu cadáver é de um homem velho e de aparência desagradável, e toda a beleza e juventude que possuía enquanto vivo “transferem-se” para o quadro. Com isso, o belo Dorian eterniza-se na obra de arte. Portanto, embora nos momentos finais fique subentendida certa mensagem moral (“Todo excesso, assim como toda renúncia, traz a sua punição”), o desfecho mantém, com as devidas proporções, a relação Beleza > Bem.
3. Revisão bibliográfica
- “Há algo paradoxal a respeito da ética da beleza. Conflitos acirrados entre Oscar Wilde e os críticos o levaram a propor uma ética da beleza : não existe essa coisa de um livro moral ou imoral. Livros são bem ou mal escritos. Importa que um livro seja belamente escrito. Mas como Oscar Wilde ficou exacerbado por comentários de críticos que chama de corruptos e ignorantes, é difícil poder se chegar a algum diálogo e muito mais ainda a um consenso sobre a ética da beleza como critério de leitura de um texto literário. Ficará mais facil aos críticos entender que a beleza exacerbada como temática do texto "O retrato de Dorian Gray" tenha servido posteriormente à própria condenação de Oscar Wilde, da qual os críticos podem aparecer como cúmplices. A ética da beleza mesclada à agressão de Oscar Wilde contra os críticos não pde ser alheia à agressão da condenação. (...)Algo paradoxal: Oscar Wilde propõe uma ética da beleza. E o livro mostra como a absolutização da beleza acaba sendo a-ética.”
(“A Beleza em O Retrato de Dorian Gray”, Jacques Laberge)
- “Wilde com seu The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray) foi o responsável pela criação do principal exemplar romanesco inglês do decadentismo esteticista. (...) O fato do jovem terminar por esconder o quadro é uma metáfora sobre a atitude tomada pela sociedade burguesa com relação à arte. Ao invés de aprender com ela, de reconhecê-la como modelo denunciatório das corrupções do humano na realidade, a sociedade burguesa prefere desviar os olhos. A figura do esteta enquanto degustador dos pecados é criticada através do protagonista. Os ensinamentos de Pater são (re)apresentados pelo personagem de Henry Wotton apenas para serem desacreditados. O próprio Pater, em resenha sobre o livro, observa que lorde Wotton não consegue reconhecer que a vida da mera sensação é anárquica e autodestrutiva. Dorian Gray é seu discípulo e termina mal, é o primeiro mártir do esteticismo à la Pater e a negação wildeana da divisão entre ética e estética.”
(“Um Esteta na Pátria do Utilitarismo”, Ricardo Miskolci)
4. Wilde e o Glam Rock
- “O Retrato de Dorian Gray” tornou-se o livro de cabeceira da juventude decadente da Inglaterra vitoriana, nos últimos anos do século XIX. Mesmo que, na época, tenha sido discutido mais pela imoralidade que pela qualidade literária – foi inclusive usado como uma das provas contrárias a Wilde em seu julgamento -, com o passar dos anos passou a ser considerado como um clássico moderno.
- A influência dos escritos wildeanos (e o estilo de vida que pregavam) alcançou o rock ‘n’ roll, principalmente a partir dos anos 70. O advento do glam rock representou uma fase deste estilo musical em que se mesclavam roupas espalhafatosas, shows teatrais, ênfase nas guitarras, maquiagem, androginia e todo tipo de excesso. É como se o “decadentismo” tivesse voltado, quase um século depois.
- David Bowie é o maior expoente dessa tendência. Seu disco “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972) foi um marco; era um album conceitual sobre um extraterrestre que é um “rock star”, que ao mesmo tempo prega paz e amor e é sexualmente promíscuo e “junkie” (usuário de drogas). Pode-se dizer que Bowie (o qual havia se declarado bissexual, meses antes) estava falando de libertação sexual de uma forma genuinamente artística – algo que Wilde certamente aprovaria. O cantor Boy George, por exemplo, disse: “Num tempo em que tabus sociais e sexuais estavam sendo quebrados, Bowie, como o personagem Ziggy Stardust, criou um mundo onde as possibilidades eram infinitas: você podia ser quem quisesse”.
- Na década seguinte, um dos destaques foi o conjunto The Smiths, cujo vocalista, Stephen Morrissey, era um fã confesso de Oscar Wilde. A canção “Cemetery Gates” é uma homenagem ao escritor nascido em Dublin (assim como o próprio Morrissey). Temáticas homoeróticas aparecem em canções como “Hand in Glove” e “The Boy with the Thorn Is His Side”.
- Nos anos 90, a estética andrógina voltou ao rock britânico, por meio de bandas como Suede e Placebo. Em canções sexualmente ambíguas, nas quais celebravam um estilo de vida hedonista (“The Drowners” e “Nancy Boy”, respectivamente, p. ex.), foram importantes na cena musical do Britpop.
Muito boa essa análise sobre o livro de D. Gray ameei!
ResponderExcluirÓtimo. Obrigada.
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