7ª reunião do Grupo de Estudos Humanistas, realizada em 13 de Agosto.
1. Biografia
- Paul Thomas Mann nasceu na cidade alemã de Lübeck, em 1875. Seu pai era o senador e mercador Thomas Johann Heinrich Mann e sua mãe era Júlia da Silva Bruhns, brasileira. Johann era luterano e Júlia, católica.
- Na universidade, estudou história da arte, economia, literatura e história para seguir a carreira de jornalista. Casa-se em 1905 com a atriz judia Katia Pringsheim.
- Durante boa parte da vida foi conservador. Apoiou a Alemanha na I Guerra Mundial, em uma situação na qual a defesa nacional ganhou tons de auto-justificação (“Reflexões de um Apolítico”). Entretanto, os rumos do conflito afetaram seus posicionamentos políticos e ideológicos, aproximando-o do liberalismo democrático e da social-democracia. Ele, por exemplo, foi um árduo defensor da República de Weimar e fez vários discursos radiofônicos para a BBC, que os transmitia para ouvintes alemães, criticando Hitler e os nazistas.
- Principais obras: “Os Buddenbrooks” (1901), “Tonio Kröger” (1903), “Morte em Veneza” (1912), “A Montanha Mágica” (1924), “Carlota em Weimar” (1939) e “Doutor Fausto” (1947). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 29.
- Em 1933, em razão da ascensão do Nazismo (em relação ao qual, desde o início, ele foi ferrenho opositor), exila-se na Suíça. Seis anos depois, em 39, muda-se para os Estados Unidos.
- Retorna à Suíça treze anos depois. Faleceu aos oitenta anos, em Zurique, em 1955.
2. Interpretação
- “A Montanha Mágica”, publicado em novembro de 1924, é um romance de formação (“bildungsroman”). Narra-se e reflete-se sobre o crescimento e amadurecimento, tanto biológico quanto espiritual, de um personagem, do nascimento à morte. Este protagonista também é símbolo de uma época, dos valores e experiências que marcam certo período histórico, intelectual e cultural. E é justamente neste que o personagem da trama aprenderá mais sobre si mesmo, os outros e também quanto à própria existência humana.
- O termo “saga”, com as devidas proporções, aplica-se ao caso do livro, embora “bildung” seja o mais interessante para apreendermos o que Mann e outros autores de romances de formação pretendem com este gênero. O primeiro deles foi ninguém mais, ninguém menos do que Johann Wilhelm von Goethe, em “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”. Há um caráter pedagógico, pois o protagonista apreende ao máximo a experiência humana ao longo de sua trajetória: o amor, a ciência, a política, os conflitos sociais, a arte, a filosofia, a fé e o próprio tempo. Porém, Mann adiciona o debate sobre a Modernidade, com todas as correntes (sejam elas apologéticas ou críticas) entrando em debate ao longo da obra. Além disso, pode-se afirmar que a liberdade (que, de certa maneira, iguala-se ao empreendimento de “busca pelo sentido da vida”, no pleno sentido humanista) seja o assunto principal deste romance.
- O estilo da narrativa de Thomas Mann é elegante, tecnicamente perfeito e de uma precisão descritiva notável. O livro flui bem, sendo capaz de causar indagações e questionamentos, mas também de emocionar o leitor. Há fluxos de consciência, embora mais pelo caráter de monólogo interior e análise psicológica do que, como no caso de “Ulisses” (James Joyce), pelo experimentalismo lingüístico. A voz narrativa é em 3ª pessoa, mas que esporadicamente se torna 1ª quando o narrador quer emitir alguma idéia ou opinião sobre os acontecimentos e personagens. O tempo cronológico tem um caráter psicológico – a trama se passa durante sete anos, mas a velocidade da passagem do tempo é decrescente: o primeiro dia de Hans no sanatório ocupa cerca de 100 páginas, depois se sucedem os primeiros dias; logo, as semanas começam a não se diferenciar e, em certo momento, até os anos passam com rapidez.
- Hans Castorp: o personagem principal do romance é um rapaz singelo, gentil e de passado aristocrático. Não por acaso, valoriza mais o ócio que o trabalho, muito embora seja um aprendiz de engenheiro. O charuto simboliza esse desejo de prazeres caros a um “bon vivant”. Porém, teve experiência precoce e constante com a morte: entre os 5 e os 8 anos, viu a mãe, o pai e o avô falecerem. Esta tripla orfandade pode explicar o fascínio – e, ao mesmo tempo, a ausência de medo – que Castorp tem pela morte.
- Logo no início da obra, Thomas Mann caracteriza seu protagonista como medíocre. Não o faz com referência à inteligência ou caráter, mas quanto ao próprio tempo e espaço em que vivia. Em outras palavras, nada havia em seu contexto que lhe favorecesse dons heróicos e ímpares. Seria esta uma reflexão de Mann sobre a falta de grandiosidade individual e a uniformidade dos tempos modernos?
- O porquê da mediocridade de Hans Castorp fica explícito em um trecho do subcapítulo “Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp”:
“O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. (...) O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as natureza mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.” (p. 47-48)
- Joachim Ziemssen: temperamento genuinamente militar, como demonstra a seguinte passagem do subcapítulo “Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo”:
“Havia, pois, o brioso Joachim, atormentando e maçando o Dr. Behrens, a fim de obter a licença de partir e de fazer o almejado serviço na “planície”, na “baixada”, como os que viviam aqui em cima chamavam, com leve mas nítido desprezo, o mundo das pessoas sadias. Para que chegasse mais rapidamente ali e poupasse um pouquinho daquele tempo que aqui se gastava tão generosamente, dedicava-se com o máximo rigor à cura regulamentada; fazia-o para recuperar a saúde, sem dúvida, mas também, como Hans Castorp adivinhava de vez em quando, por amor ao próprio regime, que, afinal de contas, era um serviço como qualquer outro, e cumprir esse dever era cumprir seu dever. Por isso acontecia todas as noites que Joachim, ao cabo de um quarto de hora, já insistia com ele em que abandonassem a reunião dos pensionistas e se recolhessem ao repouso noturno, e isso tinha as suas vantagens, pois a pontualidade militar do primo acudia ao espírito civil de Hans Castorp (...) No entanto, o fato de Joachim ter tanta pressa de abreviar a vida social no salão era também devido a outro motivo de natureza secreta, mas que Hans Castorp compreendia perfeitamente (...) o modo particularmente doloroso com que a boca do primo se crispava em determinados momentos. Ora, Marusja, a sempre risonha Marusja com o pequeno rubi no formoso dedo, com o perfume de flor de laranjeira e com os seios opulentos, mas carcomidos, também costumava estar presente às reuniões sociais, e Hans Castorp percebeu que essa circunstância afugentava Joachim, precisamente porque o atraía em excesso, de uma forma pavorosa. Joachim também se sentia “preso numa cela” (...) Em todo caso achava-se Joachim por demais ocupado consigo mesmo para que a sua existência pudesse significar uma ajuda íntima para Hans Castorp.” (p. 202-203)
- Lodovico Settembrini: o auto-intitulado humanista. Este escritor italiano é um alterego tanto de Heinrich Mann (o irmão politizado de Thomas) quanto do próprio autor de “A Montanha Mágica”, com o qual compartilhava a vocação para a pedagogia da alma humana. Settembrini evoca valores liberais, burgueses, republicanos, democráticos, progressistas... enfim, tudo aquilo que pode ser associado ao Iluminismo e ao Cânone Ocidental. Critica constantemente a morbidez de Castorp, pois se preocupa com a fascinação que o mesmo tem pelo que há de sagrado na morte, pelo “oriental”, “bárbaro” – enfim, a alma nômade e em gradual degradação do protagonista engenheiro. Cunha a expressão “filho enfermiço da vida” para designar o jovem.
O italiano é um ativista, filiado à Liga Internacional para a Organização do Progresso, que não pode ir aos encontros deste grupo em razão da doença; compensa esta frustração com seu empenho em uma Enciclopédia cujo objetivo é demonstrar, pelas belas-letras, o caminho para suprimir o sofrimento humano. Porém, é uma figura ambígua, pois, ao mesmo tempo em que tenta ser o Virgílio para o Dante que vê em Hans Castorp, é ele próprio uma pessoa que não realiza plenamente aquilo que defende. Acima de tudo, porque ele próprio está no sanatório. Além disso, o homem demiurgo que idealiza é impossível e indesejável; essa “fé” no potencial humano, ao se desligar de qualquer religiosidade e até mesmo espiritualidade, aos olhos de Mann se torna satânica, demoníaca. Ou, em outras palavras, um individualismo arrogante e moralista (no mau sentido).
- Os doutores Behrens e Krokowski: alto e de mãos largas, o primeiro destaca-se pela ironia e, às vezes, pelo cinismo com que trata os pacientes; porém, é muito popular entre os pacientes, especialmente os do sexo feminino. Seu assistente, mais jovem e bonachão, notabiliza-se pelas suas palestras, como aquela em que analisa o amor, com um olhar que mescla o poético o científico:
“Existia então uma tensão extraordinária (...) entre os dois grupos de forças que eram a necessidade de amor e os impulsos contrários, dentre os quais cumpria mencionar a vergonha e o asco. Travada nos abismos da alma, essa luta impedia, nos ditos casos, que os instintos extraviados chegassem a ser abrigados, protegidos e moralizados, daquele modo que conduzia à harmonia usual e à vida erótica regular. E como terminava esse combate (...) entre as potências da castidade e do amor? Terminava, aparentemente, com a vitória da castidade. O medo, as conveniências, a repugnância pudica, o trêmulo desejo de pureza – todos eles oprimiam o amor, mantinham-no agriIhoado, nas trevas, davam acesso à consciência e à atividade, quando muito a uma parte, jamais, porém, ao todo múltiplo e vigoroso das suas reivindicações confusas. No entanto, essa vitória da castidade não era mais que aparente, não passava de uma vitória de Pirro, pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas trevas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização (...) E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição? (...)
– Sob a forma de doença. O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado.
Agora sabiam o segredo, se bem que nem todos fossem capazes de apreciá-lo devidamente.” (pp. 176-177)
- “Satã”: Hans Castorp conhece o histriônico Lodovico Settembrini.
“Ah, Virgílio, Virgílio! Ninguém o superou, meus senhores! Acredito no progresso, certamente, mas Virgílio dispõe de adjetivos que nenhum moderno encontraria... – Enquanto regressavam, começou a recitar versos latinos com pronúncia italiana. Interrompeu-se, porém, quando se encontraram com uma mocinha qualquer, aparentemente uma aldeã, e de modo algum notável pela sua beleza. Abriu então um sorriso donjuanesco e meteu-se a cantarolar. – Ts, ts, ts – estalou a língua. – Ai, ai, ai! Oh la la! Moscazinha bonitinha, quer ser minha? Vejam só, “seus olhos brilham à luz furtiva” – citou sabe Deus que autor, e enviou um beijo em direção à jovem, que lá se ia, toda confusa.
“Que grande doidivanas!”, pensou Hans Castorp, e não mudou a sua opinião, quando Settembrini, após esse acesso de galantaria, voltou a dizer mal.” (pp. 87-88)
- “Excurso sobre o Sentido do Tempo”: reflexão do narrador sobre um dos temas principais da obra.
“Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviada se aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia (...) O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo.” (p. 144)
- “Politicamente Suspeita!”: capítulo que trata da música. Passa-se no primeiro domingo de Hans Castorp em Davos-Platz.
“– O senhor chega tarde ao concerto, Sr. Settembrini. Já está quase no fim. Não gosta de música?
– Por ordem superior, não – replicou Settembrini. – Nem quando é ditada pelo calendário. Não simpatizo com ela, quando tem um cheiro de farmácia e me é ministrada pelas autoridades para fins sanitários. Estimo ainda um pouco a minha liberdade, ou pelo menos aquele restinho de liberdade e dignidade humana que sobra a gente como nós. Em ocasiões como esta, costumo comparecer como visitante (...). Fico durante um quarto de hora e depois vou-me embora. Isso me dá a ilusão de independência... (...) A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente (...); conseqüências; é perigosa porque induz a gente à complacência satisfeita... (...) Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter político.” (pp. 156-157)
- “Liberdade”: a conciliação entre sensibilidade e racionalidade, cara a Schiller, aparece sutilmente no seguinte trecho:
“Hans Castorp escrevia com uma facilidade cada vez maior, e não compreendia como pudera ter receio da redação dessa carta. (...) Hans Castorp pediu que lhe enviassem as coisas de que necessitava. Terminou solicitando a remessa regular do dinheiro de que precisava; oitocentos marcos por mês seriam suficientes para cobrir todas as despesas. Assinou. Estava feito o trabalho. Essa terceira carta esgotava o assunto e teria um efeito duradouro – não segundo os conceitos de tempo que reinavam lá embaixo, mas segundo os dali de cima. Consolidaria a liberdade de Hans Castorp. Era essa a palavra que ele empregava, não expressamente, e nem sequer formando as sílabas no seu íntimo, mas sentindo-lhe o significado mais amplo, assim como o aprendera ali, significado que pouco tinha que ver com aquele que Settembrini dava à palavra. A isso, uma onda de espanto e de emoção, sentimento já conhecido dele, percorreu-lhe o interior, arrancou-lhe um suspiro e lhe fez estremecer o peito.” (p. 308)
- “Enciclopédia”: Castorp causa a curiosidade e risadas de todos no sanatório com a sua conduta de apaixonado, sempre esperando as ocasiões de ver Clawdia Chauchat. Em uma dessas situações, Settembrini expõe-lhe sua ligação a um grupo político que objetiva a abolição do sofrimento.
“Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo; represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! ‘O senhor é humanista!’ Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de obscurantismo cristão...” (pp. 340-341)
- A ambiguidade sexual de Hans Castorp, de certa maneira, reside na do próprio escritor (vide os contos “Morte em Veneza” e “Tonio Kröger”, de conotação homoerótica). Este aspecto fica explícita no capítulo, no qual Castorp percebe que parte de seu fascínio (e atração física) por Clawdia Chauchat devem-se ao fato de que o olhar e os trejeitos dela o fazem lembrar de um garoto que ele conhecera no ginásio: Pribislav Hippe.
- “Dança Macabra”: Castorp resolve fazer uma visita aos moribundos do sanatório, como forma de lhes dar alguma dignidade antes da morte. Seu primo faz-lhe companhia, e o próprio Dr. Behrens dá-lhe apoio em sua empreitada.
“Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de tal sorte que deveríamos sempre andar de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formais, recordando-nos da morte. Eu gostaria que fosse assim. Acho que isso corresponde à moral.” (p. 403)
“Realmente, os motivos de que nascera o seu desejo eram complexos. O protesto contra o egoísmo reinante era apenas um dentre eles. O que ainda contribuía para a sua decisão era, antes de tudo, a necessidade que experimentava o seu espírito de tomar a sério e de poder honrar o sofrimento e a morte; necessidade que ele esperava satisfazer e fortificar pelo contato com os enfermos graves e os agonizantes; tal contato compensaria os múltiplos insultos a que a dita necessidade se via exposta a cada passo, cada dia e cada momento, e que confirmavam, de um modo chocante, certas opiniões de Settembrini. Exemplos que corroborassem isso existiam em abundância.” (p. 405)
- O diálogo ‘en français’ de Castorp e Chauchat: uma das partes mais excêntricas do romance. Finalmente o protagonista tem um colóquio com a russa pela qual é apaixonado, e há situações que lembram inclusive a conversa dele com Hippe, dez anos antes (o lápis emprestado, p.ex.). No final do capítulo “Noite de Walpurgis”, finalmente o protagonista declara-se para Clawdia – em francês, é claro.
3. Revisão Bibliográfica
- Franscisco Escorsin, “Impressões de Leitura – A Montanha Mágica”:
O pessimismo de Mann quanto a seu contexto histórico: “É certo que para ele a “culpa” pela guerra não se encontrava em determinada corrente ideológica, ou numa moda científica ou mesmo apenas nos valores que aquela sociedade humana naquele tempo histórico realizava. Para Thomas Mann, o “buraco” era mais embaixo e tudo isto e mais um pouco formou o caldeirão de causas que desembocou nas grandes guerras do século XX. Thomas Mann não inocenta ninguém. Nem procura dar um sentido para o homem daquela época. Porque ele percebe que é exatamente o sentido da própria humanidade que se perdeu ali, antes de qualquer coisa. Thomas Mann vem a narrar as consequências da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em comum. Ele traz a história do declínio de uma sociedade, cujos sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que compõe aquela sociedade."
A mediocridade do protagonista: “Avisa Mann que Castorp nada tem de especial. Não é melhor nem pior do que ninguém, nem mesmo é herói. É até simpático e muito comum. Castorp, na verdade, é um medíocre, porque medíocre é o mundo em que vive e outra coisa ele não poderia deixar de ser. Sua mediocridade não diz respeito a sua inteligência e personalidade, que era singela, mas sim que ela significava a mediocridade do próprio meio de que ele vinha. Era um exemplar apenas. Quando da narrativa de infância e adolescência de Hans Castorp, Thomas Mann bem demonstra que Castorp é filho da sua época. Bem inserido, atendia às exigências escolares e os deveres sociais. Tinha tudo para dar “certo”."
O sermão do italiano: “Ouvindo isto, um dos personagens principais, o escritor Settembrini, também paciente ali, o pede para que se vá embora deste mundo em que se vive na “horizontal”. Castorp desdenha do perigo, não dá ouvidos à sua consciência. Começa então a romantizar a doença e seu estado “humano”. Neste ponto, novamente Settembrini intervém e adverte. Logo mais me aterei a este personagem fascinante e dos mais paradoxais da história, mas por ora, com sua ajuda, estabeleçamos muito claramente como o medíocre Hans Castorp se apresenta e se oferece à degradação. Settembrini percebe esta “tendência a se arraigar no caráter” do jovem e toma para si a tarefa pedagógica de corrigí-lo.”
4. A canção homônima da Legião Urbana
- O disco V, lançado em dezembro de 1991, reflete um dos períodos mais sombrios da vida de Renato Russo (1960-1996). O mal-estar era generalizado: um relacionamento amoroso instável; a descoberta de que era portador do vírus HIV; o abuso de drogas; e, como se não bastasse, a Era Collor, com promessas não cumpridas e o caos econômico trazido pelo confisco das poupanças. Foi nesse contexto dramático que Renato escreveu algumas de suas mais belas (e tristes) canções, que formaram o quinto álbum da Legião Urbana - para muitos, o melhor da banda. Uma delas é “A Montanha Mágica”, uma faixa lisérgica e soturna em seus mais de 7 minutos. As relações com a temática do livro cujo título compartilha não são explícitas, e aparecem sob a forma de uma alegoria: o vocalista da Legião compara a sua enfermidade com a de Hans Castorp. Enquanto este era tuberculoso, aquele sofria de AIDS e tinha problemas relacionados ao uso abusivo de heroína e álcool. Os estados mentais de Renato Russo são revelados em versos como os seguintes:
"Sou meu próprio líder: ando em círculos
Me equilibro entre dias e noites
Minha vida toda espera algo de mim
Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde
Minha papoula da Índia
Minha flor da Tailândia
És o que tenho de suave
E me fazes tão mal
Ficou logo o que tinha ido embora
Estou só um pouco cansado
Não sei se isto termina logo
Meu joelho dói
E não há nada a fazer agora
Para que servem os anjos?
A felicidade mora aqui comigo
Até segunda ordem
Um outro agora vive minha vida
Sei o que ele sonha, pensa e sente
Não é por incidência a minha indiferença
Sou uma cópia do que faço
O que temos é o que nos resta
E estamos querendo demais
Existe um descontrole, que corrompe e cresce
Pode até ser, mais estou pronto prá mais uma
O que é que desvirtua e ensina?
O que fizemos de nossas próprias vidas
O mecanismo da amizade,
A matemática dos amantes
Agora só artesanato:
O resto são escombros
Mas, é claro que não vamos lhe fazer mal
Nem é por isso que estamos aqui
Cada criança com seu próprio canivete
Cada líder com seu próprio .38
Chega, vou mudar a minha vida
Deixa o copo encher até a borda
Que eu quero um dia de sol
Num copo d'água"
1. Biografia
- Paul Thomas Mann nasceu na cidade alemã de Lübeck, em 1875. Seu pai era o senador e mercador Thomas Johann Heinrich Mann e sua mãe era Júlia da Silva Bruhns, brasileira. Johann era luterano e Júlia, católica.
- Na universidade, estudou história da arte, economia, literatura e história para seguir a carreira de jornalista. Casa-se em 1905 com a atriz judia Katia Pringsheim.
- Durante boa parte da vida foi conservador. Apoiou a Alemanha na I Guerra Mundial, em uma situação na qual a defesa nacional ganhou tons de auto-justificação (“Reflexões de um Apolítico”). Entretanto, os rumos do conflito afetaram seus posicionamentos políticos e ideológicos, aproximando-o do liberalismo democrático e da social-democracia. Ele, por exemplo, foi um árduo defensor da República de Weimar e fez vários discursos radiofônicos para a BBC, que os transmitia para ouvintes alemães, criticando Hitler e os nazistas.
- Principais obras: “Os Buddenbrooks” (1901), “Tonio Kröger” (1903), “Morte em Veneza” (1912), “A Montanha Mágica” (1924), “Carlota em Weimar” (1939) e “Doutor Fausto” (1947). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 29.
- Em 1933, em razão da ascensão do Nazismo (em relação ao qual, desde o início, ele foi ferrenho opositor), exila-se na Suíça. Seis anos depois, em 39, muda-se para os Estados Unidos.
- Retorna à Suíça treze anos depois. Faleceu aos oitenta anos, em Zurique, em 1955.
2. Interpretação
- “A Montanha Mágica”, publicado em novembro de 1924, é um romance de formação (“bildungsroman”). Narra-se e reflete-se sobre o crescimento e amadurecimento, tanto biológico quanto espiritual, de um personagem, do nascimento à morte. Este protagonista também é símbolo de uma época, dos valores e experiências que marcam certo período histórico, intelectual e cultural. E é justamente neste que o personagem da trama aprenderá mais sobre si mesmo, os outros e também quanto à própria existência humana.
- O termo “saga”, com as devidas proporções, aplica-se ao caso do livro, embora “bildung” seja o mais interessante para apreendermos o que Mann e outros autores de romances de formação pretendem com este gênero. O primeiro deles foi ninguém mais, ninguém menos do que Johann Wilhelm von Goethe, em “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”. Há um caráter pedagógico, pois o protagonista apreende ao máximo a experiência humana ao longo de sua trajetória: o amor, a ciência, a política, os conflitos sociais, a arte, a filosofia, a fé e o próprio tempo. Porém, Mann adiciona o debate sobre a Modernidade, com todas as correntes (sejam elas apologéticas ou críticas) entrando em debate ao longo da obra. Além disso, pode-se afirmar que a liberdade (que, de certa maneira, iguala-se ao empreendimento de “busca pelo sentido da vida”, no pleno sentido humanista) seja o assunto principal deste romance.
- O estilo da narrativa de Thomas Mann é elegante, tecnicamente perfeito e de uma precisão descritiva notável. O livro flui bem, sendo capaz de causar indagações e questionamentos, mas também de emocionar o leitor. Há fluxos de consciência, embora mais pelo caráter de monólogo interior e análise psicológica do que, como no caso de “Ulisses” (James Joyce), pelo experimentalismo lingüístico. A voz narrativa é em 3ª pessoa, mas que esporadicamente se torna 1ª quando o narrador quer emitir alguma idéia ou opinião sobre os acontecimentos e personagens. O tempo cronológico tem um caráter psicológico – a trama se passa durante sete anos, mas a velocidade da passagem do tempo é decrescente: o primeiro dia de Hans no sanatório ocupa cerca de 100 páginas, depois se sucedem os primeiros dias; logo, as semanas começam a não se diferenciar e, em certo momento, até os anos passam com rapidez.
- Hans Castorp: o personagem principal do romance é um rapaz singelo, gentil e de passado aristocrático. Não por acaso, valoriza mais o ócio que o trabalho, muito embora seja um aprendiz de engenheiro. O charuto simboliza esse desejo de prazeres caros a um “bon vivant”. Porém, teve experiência precoce e constante com a morte: entre os 5 e os 8 anos, viu a mãe, o pai e o avô falecerem. Esta tripla orfandade pode explicar o fascínio – e, ao mesmo tempo, a ausência de medo – que Castorp tem pela morte.
- Logo no início da obra, Thomas Mann caracteriza seu protagonista como medíocre. Não o faz com referência à inteligência ou caráter, mas quanto ao próprio tempo e espaço em que vivia. Em outras palavras, nada havia em seu contexto que lhe favorecesse dons heróicos e ímpares. Seria esta uma reflexão de Mann sobre a falta de grandiosidade individual e a uniformidade dos tempos modernos?
- O porquê da mediocridade de Hans Castorp fica explícito em um trecho do subcapítulo “Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp”:
“O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. (...) O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as natureza mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.” (p. 47-48)
- Joachim Ziemssen: temperamento genuinamente militar, como demonstra a seguinte passagem do subcapítulo “Temor nascente. Dos dois avôs e do passeio de barca ao crepúsculo”:
“Havia, pois, o brioso Joachim, atormentando e maçando o Dr. Behrens, a fim de obter a licença de partir e de fazer o almejado serviço na “planície”, na “baixada”, como os que viviam aqui em cima chamavam, com leve mas nítido desprezo, o mundo das pessoas sadias. Para que chegasse mais rapidamente ali e poupasse um pouquinho daquele tempo que aqui se gastava tão generosamente, dedicava-se com o máximo rigor à cura regulamentada; fazia-o para recuperar a saúde, sem dúvida, mas também, como Hans Castorp adivinhava de vez em quando, por amor ao próprio regime, que, afinal de contas, era um serviço como qualquer outro, e cumprir esse dever era cumprir seu dever. Por isso acontecia todas as noites que Joachim, ao cabo de um quarto de hora, já insistia com ele em que abandonassem a reunião dos pensionistas e se recolhessem ao repouso noturno, e isso tinha as suas vantagens, pois a pontualidade militar do primo acudia ao espírito civil de Hans Castorp (...) No entanto, o fato de Joachim ter tanta pressa de abreviar a vida social no salão era também devido a outro motivo de natureza secreta, mas que Hans Castorp compreendia perfeitamente (...) o modo particularmente doloroso com que a boca do primo se crispava em determinados momentos. Ora, Marusja, a sempre risonha Marusja com o pequeno rubi no formoso dedo, com o perfume de flor de laranjeira e com os seios opulentos, mas carcomidos, também costumava estar presente às reuniões sociais, e Hans Castorp percebeu que essa circunstância afugentava Joachim, precisamente porque o atraía em excesso, de uma forma pavorosa. Joachim também se sentia “preso numa cela” (...) Em todo caso achava-se Joachim por demais ocupado consigo mesmo para que a sua existência pudesse significar uma ajuda íntima para Hans Castorp.” (p. 202-203)
- Lodovico Settembrini: o auto-intitulado humanista. Este escritor italiano é um alterego tanto de Heinrich Mann (o irmão politizado de Thomas) quanto do próprio autor de “A Montanha Mágica”, com o qual compartilhava a vocação para a pedagogia da alma humana. Settembrini evoca valores liberais, burgueses, republicanos, democráticos, progressistas... enfim, tudo aquilo que pode ser associado ao Iluminismo e ao Cânone Ocidental. Critica constantemente a morbidez de Castorp, pois se preocupa com a fascinação que o mesmo tem pelo que há de sagrado na morte, pelo “oriental”, “bárbaro” – enfim, a alma nômade e em gradual degradação do protagonista engenheiro. Cunha a expressão “filho enfermiço da vida” para designar o jovem.
O italiano é um ativista, filiado à Liga Internacional para a Organização do Progresso, que não pode ir aos encontros deste grupo em razão da doença; compensa esta frustração com seu empenho em uma Enciclopédia cujo objetivo é demonstrar, pelas belas-letras, o caminho para suprimir o sofrimento humano. Porém, é uma figura ambígua, pois, ao mesmo tempo em que tenta ser o Virgílio para o Dante que vê em Hans Castorp, é ele próprio uma pessoa que não realiza plenamente aquilo que defende. Acima de tudo, porque ele próprio está no sanatório. Além disso, o homem demiurgo que idealiza é impossível e indesejável; essa “fé” no potencial humano, ao se desligar de qualquer religiosidade e até mesmo espiritualidade, aos olhos de Mann se torna satânica, demoníaca. Ou, em outras palavras, um individualismo arrogante e moralista (no mau sentido).
- Os doutores Behrens e Krokowski: alto e de mãos largas, o primeiro destaca-se pela ironia e, às vezes, pelo cinismo com que trata os pacientes; porém, é muito popular entre os pacientes, especialmente os do sexo feminino. Seu assistente, mais jovem e bonachão, notabiliza-se pelas suas palestras, como aquela em que analisa o amor, com um olhar que mescla o poético o científico:
“Existia então uma tensão extraordinária (...) entre os dois grupos de forças que eram a necessidade de amor e os impulsos contrários, dentre os quais cumpria mencionar a vergonha e o asco. Travada nos abismos da alma, essa luta impedia, nos ditos casos, que os instintos extraviados chegassem a ser abrigados, protegidos e moralizados, daquele modo que conduzia à harmonia usual e à vida erótica regular. E como terminava esse combate (...) entre as potências da castidade e do amor? Terminava, aparentemente, com a vitória da castidade. O medo, as conveniências, a repugnância pudica, o trêmulo desejo de pureza – todos eles oprimiam o amor, mantinham-no agriIhoado, nas trevas, davam acesso à consciência e à atividade, quando muito a uma parte, jamais, porém, ao todo múltiplo e vigoroso das suas reivindicações confusas. No entanto, essa vitória da castidade não era mais que aparente, não passava de uma vitória de Pirro, pois a potência do amor não se deixava reprimir nem violentar, o amor oprimido não estava morto, não; vivia, continuava, nas trevas, no mais profundo segredo, a almejar a sua realização (...) E qual era, afinal, a forma e a máscara que usava o amor vedado e oprimido na sua reaparição? (...)
– Sob a forma de doença. O sintoma da doença nada é senão a manifestação disfarçada da potência do amor; e toda doença é apenas amor transformado.
Agora sabiam o segredo, se bem que nem todos fossem capazes de apreciá-lo devidamente.” (pp. 176-177)
- “Satã”: Hans Castorp conhece o histriônico Lodovico Settembrini.
“Ah, Virgílio, Virgílio! Ninguém o superou, meus senhores! Acredito no progresso, certamente, mas Virgílio dispõe de adjetivos que nenhum moderno encontraria... – Enquanto regressavam, começou a recitar versos latinos com pronúncia italiana. Interrompeu-se, porém, quando se encontraram com uma mocinha qualquer, aparentemente uma aldeã, e de modo algum notável pela sua beleza. Abriu então um sorriso donjuanesco e meteu-se a cantarolar. – Ts, ts, ts – estalou a língua. – Ai, ai, ai! Oh la la! Moscazinha bonitinha, quer ser minha? Vejam só, “seus olhos brilham à luz furtiva” – citou sabe Deus que autor, e enviou um beijo em direção à jovem, que lá se ia, toda confusa.
“Que grande doidivanas!”, pensou Hans Castorp, e não mudou a sua opinião, quando Settembrini, após esse acesso de galantaria, voltou a dizer mal.” (pp. 87-88)
- “Excurso sobre o Sentido do Tempo”: reflexão do narrador sobre um dos temas principais da obra.
“Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviada se aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia (...) O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo.” (p. 144)
- “Politicamente Suspeita!”: capítulo que trata da música. Passa-se no primeiro domingo de Hans Castorp em Davos-Platz.
“– O senhor chega tarde ao concerto, Sr. Settembrini. Já está quase no fim. Não gosta de música?
– Por ordem superior, não – replicou Settembrini. – Nem quando é ditada pelo calendário. Não simpatizo com ela, quando tem um cheiro de farmácia e me é ministrada pelas autoridades para fins sanitários. Estimo ainda um pouco a minha liberdade, ou pelo menos aquele restinho de liberdade e dignidade humana que sobra a gente como nós. Em ocasiões como esta, costumo comparecer como visitante (...). Fico durante um quarto de hora e depois vou-me embora. Isso me dá a ilusão de independência... (...) A música? Representa ela tudo o que existe de semi-articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente (...); conseqüências; é perigosa porque induz a gente à complacência satisfeita... (...) Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma antipatia de caráter político.” (pp. 156-157)
- “Liberdade”: a conciliação entre sensibilidade e racionalidade, cara a Schiller, aparece sutilmente no seguinte trecho:
“Hans Castorp escrevia com uma facilidade cada vez maior, e não compreendia como pudera ter receio da redação dessa carta. (...) Hans Castorp pediu que lhe enviassem as coisas de que necessitava. Terminou solicitando a remessa regular do dinheiro de que precisava; oitocentos marcos por mês seriam suficientes para cobrir todas as despesas. Assinou. Estava feito o trabalho. Essa terceira carta esgotava o assunto e teria um efeito duradouro – não segundo os conceitos de tempo que reinavam lá embaixo, mas segundo os dali de cima. Consolidaria a liberdade de Hans Castorp. Era essa a palavra que ele empregava, não expressamente, e nem sequer formando as sílabas no seu íntimo, mas sentindo-lhe o significado mais amplo, assim como o aprendera ali, significado que pouco tinha que ver com aquele que Settembrini dava à palavra. A isso, uma onda de espanto e de emoção, sentimento já conhecido dele, percorreu-lhe o interior, arrancou-lhe um suspiro e lhe fez estremecer o peito.” (p. 308)
- “Enciclopédia”: Castorp causa a curiosidade e risadas de todos no sanatório com a sua conduta de apaixonado, sempre esperando as ocasiões de ver Clawdia Chauchat. Em uma dessas situações, Settembrini expõe-lhe sua ligação a um grupo político que objetiva a abolição do sofrimento.
“Humanista? Claro que o sou. O senhor nunca me apanhará manifestando tendências ascéticas. Digo “sim” ao corpo, honro-o e sinto amor por ele, assim como faço em face da forma, da beleza, da liberdade, da alegria e do gozo, assim como tomo o partido das coisas mundanas, dos interesses da vida, contra a aversão sentimental ao mundo; represento o Classicismo contra o Romantismo. Acho que a minha posição é inequívoca. Mas existe um poder, um princípio ao qual dedico a minha mais fervorosa aprovação, meu supremo respeito e amor, e esse poder, esse princípio é o espírito. Por mais que eu abomine ver como alguns procuram opor ao corpo qualquer fantasmagoria suspeita que chamam de “alma”, não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! ‘O senhor é humanista!’ Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso será inútil o senhor me acusar de obscurantismo cristão...” (pp. 340-341)
- A ambiguidade sexual de Hans Castorp, de certa maneira, reside na do próprio escritor (vide os contos “Morte em Veneza” e “Tonio Kröger”, de conotação homoerótica). Este aspecto fica explícita no capítulo, no qual Castorp percebe que parte de seu fascínio (e atração física) por Clawdia Chauchat devem-se ao fato de que o olhar e os trejeitos dela o fazem lembrar de um garoto que ele conhecera no ginásio: Pribislav Hippe.
- “Dança Macabra”: Castorp resolve fazer uma visita aos moribundos do sanatório, como forma de lhes dar alguma dignidade antes da morte. Seu primo faz-lhe companhia, e o próprio Dr. Behrens dá-lhe apoio em sua empreitada.
“Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de tal sorte que deveríamos sempre andar de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formais, recordando-nos da morte. Eu gostaria que fosse assim. Acho que isso corresponde à moral.” (p. 403)
“Realmente, os motivos de que nascera o seu desejo eram complexos. O protesto contra o egoísmo reinante era apenas um dentre eles. O que ainda contribuía para a sua decisão era, antes de tudo, a necessidade que experimentava o seu espírito de tomar a sério e de poder honrar o sofrimento e a morte; necessidade que ele esperava satisfazer e fortificar pelo contato com os enfermos graves e os agonizantes; tal contato compensaria os múltiplos insultos a que a dita necessidade se via exposta a cada passo, cada dia e cada momento, e que confirmavam, de um modo chocante, certas opiniões de Settembrini. Exemplos que corroborassem isso existiam em abundância.” (p. 405)
- O diálogo ‘en français’ de Castorp e Chauchat: uma das partes mais excêntricas do romance. Finalmente o protagonista tem um colóquio com a russa pela qual é apaixonado, e há situações que lembram inclusive a conversa dele com Hippe, dez anos antes (o lápis emprestado, p.ex.). No final do capítulo “Noite de Walpurgis”, finalmente o protagonista declara-se para Clawdia – em francês, é claro.
3. Revisão Bibliográfica
- Franscisco Escorsin, “Impressões de Leitura – A Montanha Mágica”:
O pessimismo de Mann quanto a seu contexto histórico: “É certo que para ele a “culpa” pela guerra não se encontrava em determinada corrente ideológica, ou numa moda científica ou mesmo apenas nos valores que aquela sociedade humana naquele tempo histórico realizava. Para Thomas Mann, o “buraco” era mais embaixo e tudo isto e mais um pouco formou o caldeirão de causas que desembocou nas grandes guerras do século XX. Thomas Mann não inocenta ninguém. Nem procura dar um sentido para o homem daquela época. Porque ele percebe que é exatamente o sentido da própria humanidade que se perdeu ali, antes de qualquer coisa. Thomas Mann vem a narrar as consequências da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em comum. Ele traz a história do declínio de uma sociedade, cujos sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que compõe aquela sociedade."
A mediocridade do protagonista: “Avisa Mann que Castorp nada tem de especial. Não é melhor nem pior do que ninguém, nem mesmo é herói. É até simpático e muito comum. Castorp, na verdade, é um medíocre, porque medíocre é o mundo em que vive e outra coisa ele não poderia deixar de ser. Sua mediocridade não diz respeito a sua inteligência e personalidade, que era singela, mas sim que ela significava a mediocridade do próprio meio de que ele vinha. Era um exemplar apenas. Quando da narrativa de infância e adolescência de Hans Castorp, Thomas Mann bem demonstra que Castorp é filho da sua época. Bem inserido, atendia às exigências escolares e os deveres sociais. Tinha tudo para dar “certo”."
O sermão do italiano: “Ouvindo isto, um dos personagens principais, o escritor Settembrini, também paciente ali, o pede para que se vá embora deste mundo em que se vive na “horizontal”. Castorp desdenha do perigo, não dá ouvidos à sua consciência. Começa então a romantizar a doença e seu estado “humano”. Neste ponto, novamente Settembrini intervém e adverte. Logo mais me aterei a este personagem fascinante e dos mais paradoxais da história, mas por ora, com sua ajuda, estabeleçamos muito claramente como o medíocre Hans Castorp se apresenta e se oferece à degradação. Settembrini percebe esta “tendência a se arraigar no caráter” do jovem e toma para si a tarefa pedagógica de corrigí-lo.”
4. A canção homônima da Legião Urbana
- O disco V, lançado em dezembro de 1991, reflete um dos períodos mais sombrios da vida de Renato Russo (1960-1996). O mal-estar era generalizado: um relacionamento amoroso instável; a descoberta de que era portador do vírus HIV; o abuso de drogas; e, como se não bastasse, a Era Collor, com promessas não cumpridas e o caos econômico trazido pelo confisco das poupanças. Foi nesse contexto dramático que Renato escreveu algumas de suas mais belas (e tristes) canções, que formaram o quinto álbum da Legião Urbana - para muitos, o melhor da banda. Uma delas é “A Montanha Mágica”, uma faixa lisérgica e soturna em seus mais de 7 minutos. As relações com a temática do livro cujo título compartilha não são explícitas, e aparecem sob a forma de uma alegoria: o vocalista da Legião compara a sua enfermidade com a de Hans Castorp. Enquanto este era tuberculoso, aquele sofria de AIDS e tinha problemas relacionados ao uso abusivo de heroína e álcool. Os estados mentais de Renato Russo são revelados em versos como os seguintes:
"Sou meu próprio líder: ando em círculos
Me equilibro entre dias e noites
Minha vida toda espera algo de mim
Meio-sorriso, meia-lua, toda tarde
Minha papoula da Índia
Minha flor da Tailândia
És o que tenho de suave
E me fazes tão mal
Ficou logo o que tinha ido embora
Estou só um pouco cansado
Não sei se isto termina logo
Meu joelho dói
E não há nada a fazer agora
Para que servem os anjos?
A felicidade mora aqui comigo
Até segunda ordem
Um outro agora vive minha vida
Sei o que ele sonha, pensa e sente
Não é por incidência a minha indiferença
Sou uma cópia do que faço
O que temos é o que nos resta
E estamos querendo demais
Existe um descontrole, que corrompe e cresce
Pode até ser, mais estou pronto prá mais uma
O que é que desvirtua e ensina?
O que fizemos de nossas próprias vidas
O mecanismo da amizade,
A matemática dos amantes
Agora só artesanato:
O resto são escombros
Mas, é claro que não vamos lhe fazer mal
Nem é por isso que estamos aqui
Cada criança com seu próprio canivete
Cada líder com seu próprio .38
Chega, vou mudar a minha vida
Deixa o copo encher até a borda
Que eu quero um dia de sol
Num copo d'água"
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