1 – Biografia
- John Stuart Mill nasceu em 20 de Maio de 1806, na cidade de Londres. Em sua infância, foi educado desde cedo para ser “o perfeito utilitarista”. Estudou grego aos 3 anos, e até os 12 já tinha fartos conhecimentos em filosofia, economia política, matemática, literatura clássica e história. Além disso, revisava textos de seu pai (James Mill) e de seu padrinho Jeremy Bentham.
- Entrou em colapso aos 20 anos. Sua crise nervosa, que durou seis meses, foi motivada pela perda de sua fé em uma educação que havia o tornado “uma madeira”, com uma vida previsível, linear, expectativas e pressões de seu meio social e, ainda por cima, desprovida de emoções. Porém, quando chorou ao ler um romance, descobriu que ainda tinha sentimentos. Tal experiência influenciou toda a sua produção intelectual posterior.
- Três anos depois conheceu Harriet Taylor, a grande paixão de sua vida. Como ela já era casada, passou vinte anos sendo o melhor amigo dela, em uma relação platônica que chocou a sociedade vitoriana. Dois anos depois que ela ficou viúva, eles se casaram. Em seus sete anos de um matrimônio cheio de cumplicidade, viveram em profundo isolamento em relação à vida social. Harriet faleceu em 1858, e Mill decidiu voltar a publicar seus escritos.
- Principais obras: “Princípios de Economia Política” (1848), “Sobre a Liberdade” (1859), “Considerações sobre o Governo Representativo” (1861), “Utilitarismo” (1863) e “A Sujeição das Mulheres” (1869).
- Aclamado como um dos maiores britânicos de sua geração, morreu em Avignon (França), em 1873.
2 – Interpretação
- Após salientar que os conflitos entre liberdade e autoridade permearam toda a história da humanidade, o autor resgata o conceito tocquevilliano de “tirania da maioria”. Este despotismo social ocorre quando a opinião de uma maioria procura se impor sobre possíveis dissidências. Deve-se evitar os dois extremos: a ação excessiva do Estado nas relações sociais, assim como uma completa omissão.
- Um princípio bem simples, que oriente a relação entre sociedade e indivíduo: o único fim para o qual a humanidade está permitida a agir com poder coercitivo, é a auto-proteção, ou seja, para prevenir o dano de um membro da comunidade a outros. No que concerne aos outros, a sociedade pode interferir, mas se for uma questão que envolva apenas o próprio indivíduo, sua independência é absoluta. Sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano.
- Liberdade é procurar o seu próprio bem à sua própria maneira. O estabelecimento de limites às ações dos outros é importante para que as ações de um/uns não constranjam o comportamento dos demais.
- Respeito ao pensamento minoritário; discutir e experimentar. Mesmo se todos os seres humanos, exceto um, tiverem uma mesma opinião, nada daria a eles o direito de oprimir esse dissidente, assim como este também não teria o direito de, caso tivesse poder para tal, silenciar a maioria.
- Exemplos históricos: Jesus e Sócrates (ambos dissidentes que foram mortos por terem permanecido íntegros a seus ideais), Marco Aurélio (um dos mais cultos imperadores romanos, infelizmente também perseguiu os cristãos), Reforma (demorou séculos até ganhar força política suficiente). Por último, o autor utiliza o exemplo de Rousseau e o Iluminismo para mostrar que mesmo aquele que só tem razão em alguns pontos ainda assim pode quebrar o consenso o pensamento dos demais (no caso, a crítica à civilização).
- Questiona-se a idéia de que unanimidade seria um critério de verdade. É ressaltada a importância da liberdade de expressão. Mesmo se uma idéia for errada, deve-se defender o direito de opiná-la; se ela for verdadeira, é a oportunidade para que as pessoas mudem de idéia; se ambas forem meias-verdades, pode ocorrer a combinação dos aspectos corretos de cada uma delas. O autor cita o exemplo de Sócrates e Platão para falar da dialética (diálogo) como meio de sempre renovar os pensamentos e concepções, saindo assim dos lugares-comuns. O cristianismo é um bom exemplo de doutrina que incorporou aspectos de outras culturas e filosofias de vida, mas que corre o risco de estagnar caso se torne uma moralidade “pura” e inquestionável.
- Como a humanidade é imperfeita, deve haver diversidade de experiências de vida. Ao mesmo tempo, o bem-estar é mais bem alcançado se houver um livre desenvolvimento da individualidade, que é intrinsecamente boa. Mill estabelece um diálogo com Humboldt, ao relembrar o argumento deste de que o fim do homem é o mais alto e harmonioso desenvolvimento de seus poderes para um todo completo e consciente. Individualidade + diversidade = originalidade.
- Cultivo do ser humano: o indivíduo deve poder fazer escolhas; assim, será livre para usar e interpretar a experiência humana à sua própria maneira. Os costumes são úteis paras certas circunstâncias, mas não desenvolvem qualidades distintas. Os poderes mentais e morais só se aprimoram na medida em que são usados; eis a importância da formação do caráter.
- Diferentes pessoas precisam de diferentes ambientes para desenvolverem-se espiritualmente. Tal independência é uma forma de resistência ao despotismo, pois, mesmo que poucos possam mudar as práticas estabelecidas, isso já é suficiente para impedir a estagnação. É indispensável que haja uma atmosfera de liberdade, para que pessoas de gênio possam se desenvolver. Há o perigo da mediocridade coletiva – indivíduos perdidos na multidão. A excentricidade, portanto, é valiosa.
- O despotismo dos costumes (ex.: China) ocorre quando há um nivelamento moral, uma uniformização cultural; elimina-se qualquer desvio do padrão social; cessa-se a posse de individualidade. Além de anular o espírito de autonomia e aprimoramento, a sociedade torna-se estacionária, com cada vez menores espaços e oportunidades para inovação. Eis o moderno regime da opinião pública, que desacostuma os humanos à variedade de situações.
- Limites da autoridade da sociedade: Mill lida com a idéia aristotélica de meio-termo, a justa medida como orientação para definir a esfera do individual e do social. Embora a sociedade não seja constituída por um contrato, há certos deveres e condutas sociais a serem seguidas. Quando a ação de uma pessoa prejudica o interesse de outras, a sociedade tem jurisdição sobre isso; injúria e negócios que prejudicam o interesse público (más condições nos local de trabalho), por exemplo.
- Certas legislações sociais e interferências do público prejudicam o florescimento do indivíduo; de quebra, costuma-se intervir errado, em âmbitos errados. É importante lembrar que nenhuma comunidade tem o direito de forçar a outra a ser civilizada. Muitas vezes, a barbárie está entre nós.
- Educação estatal: há o risco de se moldar as pessoas a serem exatamente umas como as outras, o que prejudica a individualidade e a diversidade. Em outras palavras, a ameaça de um despotismo sobre a mente. Mesmo os exames de qualificação são parciais a certas visões de mundo, prejudicando a pluralidade de opiniões; eles deveriam ser voluntários. A formulação da educação universal virou uma batalha político-partidária: o que ensinar, como ensinar. O Estado deveria custear somente a educação das classes mais pobres, e deixar aos pais o direito de decidir como conduzir a formação de seus filhos.
- Alguma regulação do Estado pode vir a ser positiva, mas ele não pode interferir excessivamente nas atividades econômicas. Às vezes, os indivíduos resolvem os problemas melhor do que o governo, mas também há um lado pedagógico - exercer seu julgamento e treinar sua cidadania; enfim, uma educação mental. A administração dos negócios puramente locais, por exemplo, deve ficar a cabo das localidades.
3 – Revisão bibliográfica
- Gertrude Himmelfarb: pode-se compreender muito da obra de Mill a partir de sua história de vida. Após o colapso nervoso, o autor passou a acreditar que a “cultura interna do indivíduo” (poesia, arte, música, natureza...), tão subestimada pelos utilitaristas, deve ser tão valorizada quanto a “cultura intelectual”. Ela é importante para a busca da felicidade, pois estimula as sensibilidades e paixões do indivíduo.
- David Fleischer: “Sobre a Liberdade” se tornou a defesa clássica da liberdade em língua inglesa. A marca de uma sociedade liberal é o direito do indivíduo de ser “convencido” e não coagido. A liberdade política, portanto, justifica-se na medida em que fortalece um caráter moral individual. A obra é um clamor por uma opinião pública tolerante. Stuart Mill é enigmático, no sentido de que era um empiricista que quase virou idealista, um utilitarismo que muito minou tal doutrina, um determinista que queria acreditar na vontade livre e um individualista que se tornou uma espécie de socialista (não no sentido estatal, mas enquanto cooperação voluntária).
- J.W. Burrow: como já foi dito anteriormente, as idéias de Stuart Mill sobre individualidade e diversidade inspiraram-se em “Os Limites da Ação do Estado”, escrito por Wilhelm von Humboldt. A própria epígrafe de “Sobre a Liberdade” foi retirada de tal ensaio. Porém, Mill tinha influências positivistas, não tendo uma faceta de “explorador faustiano” de Humboldt; por exemplo, ele expressa uma noção evolucionista ao falar que a livre competição de idéias e estilos de vida permite o acesso a verdades, as quais permitiriam um aprimoramento das condutas dos homens.
- Iain Hampsher-Monk: pode-se traçar uma história das mentalidades para entender o pensamento de John Stuart Mill. É um autor que mescla influências do utilitarismo (Bentham e seu próprio pai, James Mill; conseqüencialismo, uma defesa de algo por seus benefícios sociais), elitismo (Carlyle e Coleridge; a importância de opiniões diferentes em relação às das massas), utopismo (Saint-Simon) e liberalismo republicano (Tocqueville; o estudo das relações entre a cultura política democrática e a independência de pensamento). A liberdade igualitária foi marca registrada dessa síntese filosófica que se seguiu a seus primórdios utilitários.
4 – Influências
- Libertarianismo: sua contundente defesa da liberdade pessoal converge com uma das teses centrais da filosofia libertária. O argumento é de que somente sob liberdade que os seres humanos podem descobrir e expressar possibilidades das mais gloriosas.
- Social-Liberalismo: em textos como “Considerações sobre o Governo Representativo”, Mill aponta uma função educativa nas instituições políticas. Além de defender um sistema eleitoral que permitisse uma representação mais proporcional e que valorizasse candidatos mais ilustrados, afirma o autor que é por meio da participação que os cidadãos “aprendem” a democracia.
- Feminismo: em “A Sujeição das Mulheres”, que trata da emancipação e educação feminina, o pensador fala da necessidade se mudar os papéis da mulher no casamento. Além disso, rejeita uma suposta inferioridade delas em relação aos homens e defende que o sufrágio seja estendido às mulheres.
- Filosofia política contemporânea: embora não seja contratualista, Mill exerceu influência sobre pensadores como John Rawls (justiça), Robert Nozick (utopia) e Will Kymlicka (multiculturalismo), no que tange a suas preocupações com a autonomia e o respeito à pluralidade de valores e opiniões.
- Tornou-se um cânone instantâneo para o liberalismo do século XIX. É considerado como uma síntese da cultura política britânica daquela época, ao expressar simultaneamente idéias utilitaristas e preocupações de ordem mais ética.