Fichamento feito por Kaio Felipe, em 24 de Março. Servirá de material para uma futura palestra sobre O Valor das Artes Liberais para o Estudante das Humanidades.
A Vida Intelectual (Antonin Sertillanges)
Introdução
- Quando não se procura agradar o mundo, ele se vinga; se por acaso se consegue agradá-lo, ele ainda assim se vinga nos corrompendo. Devemos, no entanto, ser indiferentes ao seu julgamento, mas prontos a ser-lhe úteis.
Capítulo 1 – A Vocação Intelectual
- Vocação é fazer do trabalho intelectual sua vida, dedicar-se ao estudo para ter como recompensa o profundo desenvolvimento do espírito; ou seja, realizar plenamente a si mesmo e amar a verdade. Que venham à vida intelectual com propósitos desinteressados, não por ambição ou tola vaidade. Obter sem pagar é o desejo universal; mas é um desejo de corações covardes e cérebros enfermos.
- A ciência é conhecimento pelas causas e, quanto à produção, criação pelas causas.
- “O gênio é uma longa paciência”, mas uma paciência organizada, inteligente. Aliás, para a vida intelectual, estar um pouco acima da média já é o bastante; o restante é fornecido pela energia e por suas aplicações sensatas.
- O que vale acima de tudo é o querer, um querer profundo: querer ser alguém; o chegar a alguma coisa; ser, pelo desejo, esse alguém qualificado por seu ideal.
- O trabalhador cristão não deve se deixar tentar pelo individualismo, imagem deformada da personalidade cristã. A solidão vivifica tanto quanto o isolamento paralisa e esteriliza.
- Toda verdade é prática, é vida, orientação, caminho em vista do fim humano.
- Mais do que nunca o pensamento aguarda os homens e os homens o pensamento. Utilizemos o valor dos mortos para viver, pois a verdade é sempre nova.
Capítulo 2 – As Virtudes de um Intelectual Cristão
- Não se acreditam nesses joalheiros que vendem pérolas, mas não as usam.
- A vida é uma unidade, que se deve ao amor, que não ocorre sem virtude.
- Apaziguar-nos é isolar em nós o sentido do universal; retificar-nos é isolar o sentido do verdadeiro.
- Vícios: estupidez, preguiça, sensualidade, orgulho, inveja, irritação.
- A pureza do pensamento exige a pureza da alma. Em seus graus culminantes, a verdade e o bem estão interligados e são idênticos.
- As grandes intuições pessoais provêm: do aperfeiçoamento moral, do desapego de si e das banalidades habituais, da humildade, da simplicidade, da disciplina dos sentidos e da imaginação e da entrega à busca dos grandes fins.
- A virtude própria ao homem de estudo é evidentemente a estudiosidade. Esta consiste em uma temperança moderadora, evitando dois vícios que se opõem: a negligência e a vã curiosidade.
- “Todo estudo é um estudo da eternidade” (Van Helmont). Tudo (corpo e alma), num intelectual, deve ser intelectual. É mais do que desejável se preocupar em ter uma boa saúde. “Uma alma sã em um corpo são” continua sendo o ideal.
- Recomendações: higiene; vida ao ar livre (janelas abertas, passeios antes e depois do trabalho...); respirar profundamente e relaxar o corpo; férias (pelo menos uma vez por ano); comida leve, simples e moderada; sono na medida certa.
- Um amigo do prazer é um inimigo de seu corpo e se torna depressa um inimigo de sua alma. Por sua vez, a disciplina do corpo é aumentar sua mortificação.
Capítulo 3 – A Organização da Vida
- Quando se pensam num gênio, nunca vem à mente uma imagem dele participando de um jantar. Uma vocação é uma concentração; não se deve, por dinheiro, pensar e produzir. É o caso de reduzir o lado material ao mínimo a fim de aliviar, liberar o espírito.
- Que a mulher guardiã do lar não seja o gênio maldoso, mas sim a musa.
- “Ama tua cela, se queres ter acesso ao celeiro de vinhos.” (Santo Tomás)
- Sejam, pois, lentos para falar, porque muitas palavras fazem o espírito esvair-se como água.
- Não cuidem de conversas seculares, isto é, sem repercussão moral ou intelectual.
- Sem recolhimento, não há inspiração; a paz é a tranqüilidade da ordem, e a educação é a expansão de nossa alma. Antes de dar a verdade, adquiria-a, e não jogue fora o grão de sua semeadura. Ou seja: para conhecer a humanidade e para servi-la, é preciso entrar para dentro de si.
- As dificuldades em trabalhar sozinho – p.ex., quando o entusiasmo inicial é seguido por um demônio da preguiça que nos diz: “para quê?”. Sendo assim, o apoio de outrem seria contra de eficácia admirável contra esse spleen. A amizade é uma maiêutica.
- Cultive também os relacionamentos necessários. A dificuldade dos romancistas em nossos dias me parece ser a seguinte: se eles não freqüentam a sociedade, seus livros são ilegíveis, e se a freqüentam, eles não têm mais tempo para escrevê-los!
- A sociedade é um livro a ser lido, apesar de ser um livro banal.
- A palavra pesa quando se sente por baixo dela o silêncio.
- O refluxo do homem todo para a cabeça causa desorientação e vertigem; uma diversão é indispensável à vida cerebral.
- Já diria Santo Tomás: “o real é o fim último do julgamento”. Ou seja, o pensamento se apóia nos fatos. A ação encontra por toda parte “episódios de vida” que serão a representação de suas idéias abstratas. Esse instrutor que é a ação é ao mesmo tempo um professor de energia cujas aulas não serão inúteis a um solitário.
- O espírito de silêncio será, pois, exigido onde se estiver. É ele, sobretudo, que importa.
- Ficar em casa e se entregar a um falatório interior, ao embate dos desejos, à exaltação do orgulho, à corrente dos pensamentos que introduzem em nós um meio exterior absorvente e repleto de discórdia, seria de fato isso a solidão? Não.
Capítulo 4 – O Tempo do Trabalho
- O estudo já foi denominado uma oração à verdade. O desejo de saber define nossa inteligência enquanto potência de vida. O que falta para fazer uso dessa vida permanente em benefício da verdade? Unicamente disciplina.
- A verdade grita pelas ruas e não nos desleixa mesmo quando nós a desleixamos.
- Um grande pensamento pode nascer acerca de todo e qualquer fato. Aprendam a olhar e confrontem o que se apresenta aos senhores com suas idéias costumeiras ou secretas. Um sem-número de verdades circula nos discursos mais simples. As grandes descobertas se resumem a reflexões sobre fatos comuns a todos.
- Tudo deve alimentar nossa especialidade. O universo é em grande parte o que nó fizemos dele.
- Tanto o sono quanto a insônia podem ser úteis para clarificar idéias. Tenham à mão um bloco de anotações.
- Antes de dormir, deixe um ponto para meditação, pois o sono, que trabalha sozinho, trabalha a partir de um material prévio.
- A vida de dissipação não é um repouso, é um esgotamento. O repouso é, pois, uma restauração, não um gasto tresloucado. Aproveite-o para, p. ex., trocar as impressões do dia com a família.
- Para os instantes de plenitude, tudo deverá ser previsto para que nada venha atrapalhar, dissipar, reduzir ou enfraquecer essa preciosa duração.
- Fujam acima de tudo do trabalho feito pela metade, da concentração relapsa. Quando abrir-se à verdade, abstraia-se de todo o restante. Muitas vezes duas horas por dia bastam para uma obra.
- Durante a plenitude, defenda sua solidão com uma aspereza que não respeita mais nada; que Cérbero esteja postado à sua porta. Porém, essa solidão não deve ser encarada materialmente, mas no sentido espiritual; a companhia de um amigo absorto pode ser favorável.
- Comprem a solidão, e paguem suas liberdades esbanjando demonstrações de delicadeza e préstimos afáveis. É preferível que seu retiro seja mais proveitoso a todos que sua presença ativa.
Capítulo 5 – O Campo do Trabalho
- Uma sugestão é o estudo comparado das ciências, sem se ater apenas a uma especialidade. Toda ciência, cultivada em separado, não só não se basta a si mesma, mas apresenta perigos que todos os homens sensatos reconheceram. É preciso alternar as culturas para não arruinar o solo.
- Esse ardor de que é tomada uma inteligência enérgica, ao entrar em contato com as grandezas do espírito, transmite ao estudo uma vitalidade e facilidade extraordinárias. Os maiores dentr os grandes homens sempre deram mostras de uma maior ou menor tendência para a universalidade. Ninguém conseguiria confinar numa só cultura homens tais como Aristóteles, Bacon, Leonardo da Vinci, Leibniz ou Goethe. Eis um parâmetro frutífero.
- Distribuam o tempo; organizem a sucessão dos estudos: isso não se dar ao acaso. Em cada coisa, vão direto ao essencial; não se demorem em minúcias.
- É importante para o cientista que ele estude a rainha das ciências, a filosofia, e que o filósofo não deixe de adquirir conhecimento na teologia. O homem da verdade deve centrar sua pesquisa no que é ponto de partida, nos princípios primeiros.
- O peso de uma doutrina e sua novidade são duas coisas diferentes. O gênio datado não existe.
- Argumentamos no sentido de certa extensão, porém em prol da própria profundeza e a título de formação. Uma vez que esta for obtida, é preciso pôr-se a cavar, e só a especialização o permite.
- Vencer uma dificuldade é bom e é necessário, mas a vida intelectual não deve virar uma acrobacia permanente. É muito importante trabalhar num estado de alegria, logo de facilidade relativa, portanto segundo suas aptidões. Tendo pretendido ser legião, se terá esquecido de ser alguém.
- É preciso compreender tudo, mas com o objetivo de conseguir fazer alguma coisa.
Capítulo 6 – O Espírito do Trabalho
- Nossa alma não envelhece; ela está sempre em crescimento. Que o estudioso esteja, portanto, sempre à escuta da verdade.
- O grande inimigo do saber é a nossa indolência. Deve-se sempre procurar, sempre se esforçar. Que cada tarefa os envolva a fundo, como se ela fosse única.
- Alguns fatos bem escolhidos ou algumas idéias firmes – digo firmes quanto a sua coerência e seus encadeamentos – são material suficiente para uma produção genial.
- Uma pronta obediência: eis o que chama em nós a verdade. O cético está mal equipado para a verdade. A descoberta é obra da simpatia.
- Intelectualmente, o orgulho é o pai das aberrações e das criações factícias. O intelecto é globalmente uma potência passiva – forte na medida em que se é receptivo. Compreender é tornar-se outro e sujeitar-se a uma invasão muito positiva.
- O que importa num pensamento não é a sua proveniência, são suas dimensões.
- Fujam dos espíritos que são escravos do trabalho, das fórmulas limitadas, das estruturas livrescas.
- As entrelinhas de um grande texto constituem seu verdadeiro tesouro.
- Estudar significa conferir precisão a algumas condições, e só se estuda com grandeza ao colocar esse pouco sob os auspícios daquilo que ainda se ignora.
Capítulo 7 – A Preparação do Trabalho
- A leitura é o meio universal de aprender, a preparação imediata ou distante de toda produção. O mundo intelectual todo pode ser comparado, graças à leitura, a uma sala de redação ou a um escritório de negócios.
- A primeira regra é esta: leiam pouco. O que se proscreve é a paixão de ler, a compulsão, a intoxicação por excesso de nutrição espiritual, a preguiça disfarçada. Deve-se ler inteligentemente, não apaixonadamente; tão somente o que se quer reter, o que deve ser aproveitado.
- A maioria dos romances agita e desnorteia os pensamentos. Quanto aos jornais, defendam-se contra eles. Basta uma síntese semanal ou até mesmo bimensal.
- Escolham os livros e escolham nos livros. Saciem a sede unicamente nas fontes, e não tenham relacionamentos senão com a elite dos pensadores. Amem os livros eternos, que dizem as verdades eternas. Um livro vale o que valem os senhores e o que senhores o fazem valer.
- Há quatro espécies de leitura:
1. Leituras fundamentais: para ter uma formação e ser alguém. A escolha de um pai intelectual é sempre coisa séria.
2. Leituras ocasionais: em vista de uma tarefa. Recorrer-se-á a outras fontes para informar-se, não para formar-se.
3. Leituras de treinamento: edificantes, são o treinamento para o trabalho e para o bem. Ter nos momentos de depressão intelectual ou espiritual seus autores prediletos, suas páginas estimulantes, tê-los à mão, sempre prontos para inocular-lhes uma nova seiva, é um recurso de imenso valor.
4. Leituras relaxantes: distração. Depende do gosto, mas sugere-se narrativas de viagem, poesia, crítica de arte, memórias etc.
- Os gênios nos habituam ao ar das alturas. As grandes máximas são múltiplas experiências condensadas. No fundo, se soubermos como utilizá-los, os grandes homens nos fazem comunicar-nos com as mesmas verdades essenciais.
- Lê-se unicamente para refletir. O ensino não nos fornece senão meios de agir espiritualmente. Os livros são placas de sinalização.
- Pela citação, confere-se glória ao outro, e recebe-se em retorno outra idêntica. “Que minha leitura me possibilite engendrar pensamentos à semelhança não de meu inspirador, mas de mim mesmo!”
- Não se vive da própria memória; usa-se sua memória para viver. Para que o homem de estudo progrida, que ele estabeleça, dentro de si, graças à memória, uma estrutura correspondente que lhe permita adaptar-se, e dessa maneira agir. Deve-se organizar a memória para conservar idéias mestras.
- As quatro regras de memorização de Santo Tomás são: I) Ordenar o que se quer reter; II) Nisso investir profundamente o espírito; III) Sobre isso meditar freqüentemente; IV) Quando se quiser rememorá-lo, tomar a cadeia por uma extremidade, a qual acarretará todo o restante.
- As duas categorias de anotações são: I) Preparação distante, com leituras e meditações para formar-se e alimentar o espírito; II) Preparação imediata, com o estudo de um assunto específico, lendo o que se publicou sobre o assunto.
- Que uma coisa seja bela e boa, que seja preciosa teoricamente, não é uma razão para escrevê-la.
- “Leio, e ao ler escrevo; porém escrevo o que penso em contato com outrem, mais do que escrevo o pensamento de outrem, mesmo se transcrevo textualmente.” Use o método das fichas.
- No caso das notas visando a um trabalho, que a leitura seja cada vez mais tendenciosa.
- Começar pelo plano detalhado ou pela documentação? Depende do que se estuda. Porém, as anotações de estudo devem sempre constituir um trabalho efetivo, nos momentos de plenitude.
Capítulo 8 – O Trabalho Criador
- Nunca se produzindo nada, adquire-se o hábito da passividade.
- “Estilo é o instrumento espiritual que eu emprego para me dizer e dizer a outrem o que eu entendo da verdade terrena.” O estilo é o homem.
- É preciso saber pensar em voz alta, formular seu verbo para o interior e para o exterior.
- As qualidades do estilo se traduzem em três palavras: verdade, individualidade e simplicidade.
- Um estilo é verdadeiro quando responde a uma necessidade do pensamento e quando permanece em contato íntimo com as coisas.
- Evite a verborragia e o automatismo, e sempre se coloque ante as coisas com fervor. O floreio é uma ofensa ao pensamento; o estilo exclui a inutilidade. Procure ser compreendido por todos; todo exibicionismo é uma afronta à beleza.
- Evite a ambição; voltados inteiramente para a verdade, os senhores devem servi-la e não dela servir-se. Afinal, só se age com plenitude em prol de causas pelas quais se aceitaria morrer.
- A verdade é essencialmente impessoal. Não se deve ceder à pressão da opinião pública e escrever como se ela estivesse lendo por cima de seu ombro.
- Tenha constância, paciência e perseverança. Evite o desânimo, o desgosto e a negligência. Não perca tempo porque “não vale a pena começar já” ou “ainda não está na hora”; aproveite para revisar. Não caia em distrações (rabiscar, dicionário, estante...). Uma genuína força de alma se faz necessária para escapar a essas insignificâncias. Se sua lassidão for demasiada, façam uma pausa voluntária para recobrar as forças. Por exemplo, uma leitura rápida na obra do autor predileto.
- Um estimulante mais inocente é a caminhada, seja ao ar livre, seja em seu escritório.
- Adquira o hábito de pensar. O espírito se molda ao que lhe é pedido com freqüência.
- Quanto à paciência, a arte de pensar e a ciência exigem-na; evite a pressa inconveniente. A alma é essa fonte secreta: não procurem desvendar prematuramente seu mistério. O homem que dá tempo ao tempo tem todo o tempo do mundo, que está sediado na eternidade.
- O intelectual é por definição perseverante. Reflita antes de iniciar uma obra; se disserem “Eu farei”, façam. Ter uma vocação é ter uma obrigação do perfeito. Uma obra, no que diz respeito ao fundo, deve vir de um só jato; dêem o máximo de si na hora da criação.
- Não procure acima de ti. O “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates é não apenas a chave da moral, mas também de toda vocação.
Capítulo 9 – O Trabalhador e o Homem
- O estudo tem de ser proveitoso para a vida; a obra acabada é o homem.
- Para os que tencionam dedicar-se à vocação do estudo, não dêem as costas, para favorecê-lo, a todo o restante da vida (a natureza, a música...). Não renunciem a nada do que faz parte do homem. Não façam do trabalho uma monomania. Preservem uma cota de lazer; não se esgotem.
- Quando não se previu o repouso, o repouso que não se toma “toma-se”; ele se intercala sub-repticiamente no trabalho sob a forma de distração, sonolência e necessidades que se deve atender.
- Diante das provações (inveja, incompreensão, injustiça, abandono...), a resposta se dá pelo trabalho. Ele equilibra a alma e confere unidade interior. Diante das críticas, sejam elas superficiais ou certeiras, volte ao trabalho; corrija-se e cale-se, evite rancores.
- A tristeza e a dúvida matam a inspiração, mas somente quando se cede a elas.
- A renúncia material do intelectual é recompensada: o mundo lhe é dado espiritualmente. A recompensa do esforço é ter crescido. O sábio é o que possui erudição e experiência de vida.
- O verdadeiro intelectual não deve temer a esterilidade e a inutilidade; os resultados às vezes tardam, mas não falham. Se não podemos nos igualar aos que admiramos, sempre podemos nos igualar a nós mesmos: eis nosso único objetivo.
Conclusão, "Sem suor e sem trabalho, nenhuma obra fica perfeita, isto é, nada se consegue sem grande esforço, sem muita diligência e atividade"
ResponderExcluir