outubro 06, 2011

O Pessimismo Otimista do "Cândido" de Voltaire

Mini-curso sobre "Cândido ou O Otimismo" (Voltaire), realizado em 9 de Setembro no CEM 02 Gama, em parceria com o Fórum Permanente de Estudantes (CESPE).

1 – Biografia (fonte: www.consciencia.org)

François Marie Arouet (1694-1778) nasceu em Paris. Seu pai era tabelião e possuía pequena fortuna. Sua mãe tinha origem aristocrática. Ela morreu depois do parto. Tinha um irmão mais velho, Arnaud, que entrou para um culto herético jansenista.

- François revelou talento literário e sensibilidade poética logo na infância. Ele comprou livros com a herança de uma senhora que havia visto nele futuro cultural. Com esses livros, e com a tutela de um abade, começou sua educação. O abade lhe mostrou o ceticismo e as orações religiosas.

- Com o intuito de tornar o filho advogado do rei, coloca-o num colégio jesuíta. Os jesuítas ensinaram a Voltaire a dialética, arte de dialogar progressivamente, para provar as coisas. Ele discutia teologia com os professores, que reconheciam Voltaire como um “rapaz de talento mas patife notável”.

- Seu padrinho o introduziu numa vida desregrada. Conheceu escritores, poetas e cortesãos. Ficava na rua até tarde, divertindo-se com fanfarrões epicuristas e voluptuosos.

- Quando François termina o colégio, seu pai arranja para que se torne pajém do marquês de Châteauneut. Parte em missão diplomática com esse embaixador para Haya, Holanda. Logo que chega lá encontra uma moça: Olympe Runoyer, a Pimpette. François teve encontros amorosos com a moça e queria que ela fosse morar com ele na França. O caso foi descoberto. Mandam-o de volta para a casa de seu pai.

- François começa a ficar conhecido por ser brilhante, imprudente, malicioso e turbulento. É um espírito versátil, dono de uma cultura notável, que o ajudava a ser fecundo. Em 1715 escreve a peça Édipo e o poema Henríada, um épico sobre Henrique IV. Sua fama aumenta e todas as coisas espirituosas e maliciosas são atribuídas a ele, inclusive algumas anedotas, contra o regente que governava, duque de Órleans As anedotas falavam que o regente conspirava para usurpar o trono. Em 1717, o regente manda-o para a Bastilha, a prisão parisiense. Na Bastilha, onde ficou um ano preso, adota o nome de Voltaire, como forma de se separar do pai (e, ironicamente, escreve uma peça chamada Édipo).

- Novamente foi preso por um curto período (briga com um duque); preferiu o exílio na Inglaterra. Nos três anos que esteve em Londres, conseguiu desenvolver sua intelectualidade. Se relaciona com os poetas Young e Pope; com o escritor Swift e o filósofo empirista Berkeley. Admira-se com a liberdade de expressão dos ingleses, que escrevem o que querem. A filosofia inglesa, que vinha desde o início da modernidade, com Bacon, Hobbes e Locke e os deístas, o agradou. Estuda a fundo a obra de Newton, e mais tarde propaga suas idéias na França, com as Cartas filosóficas, de 1734. Voltaire absorve rapidamente a cultura e a ciência inglesa, e admira a tolerância religiosa.

- A correspondência de Voltaire é numerosa. Não só as cartas sobre os ingleses, mas também com inúmeras personalidades da época, como Frederico, o Grande, da Prússia, de quem foi muito amigo.

- Aos poucos, Voltaire volta a ter contato com Paris. Graças à proteção de madame Poiapadeur, vira historiógrafo real. Ele se torna candidato à Academia Francesa. Em 1746, é eleito e faz um belo discurso de posse. Depois de quinze anos, sua relação com a marquesa torna-se difícil. Em 1748, a marquesa começa um caso com Saint Lambert; ela morreu no ano seguinte.

- Nas suas obras históricas (p.ex., A Era de Luís XIV) Voltaire não dedicou um enorme espaço à Judéia e ao cristianismo, e relatou com imparcialidade a gigantesca cultura oriental. Sob nova perspectiva, descobriu-se nesse mundo, e os dogmas europeus puderam ser questionados.

- Os enciclopedistas do Iluminismo Francês, encabeçados por Diderot, pedem sua contribuição. Escreve alguns artigos para a Enciclopédia. Ocorre então uma ruptura entre Voltaire e Diderot, por desavença de opiniões. Voltaire ironiza a defesa do estado de natureza de Rousseau (o famoso bom selvagem) dizendo que o que difere o homem dos animais é a educação e a cultura.

- Em 1755 soube do terremoto em Lisboa, onde morreram umas trinta mil pessoas. Ficou revoltado ao saber que os franceses consideravam aquilo castigo divino.

- - “Cândido” foi escrito em três dias, em 1758. Conta com otimismo pessimista a história de um simples rapaz, filho de um barão. É reconhecido como a obra-prima de Voltaire, sendo incluída no Cânone Ocidental por seus ensinamentos substanciais.

- O “Dicionário filosófico” foi publicado em 1764. Foi o primeiro livro de bolso da história e alcançou muito sucesso. As idéias nele contidas são críticas ao Estado e à religião. Suas idéias foram propagadas na Revolução Francesa e refletiam os ideais desta, durante a qual foi muito lembrado.

- Como viajou muito, não era patriótico. Não confiava no povo e não gostava da ignorância, que estava muito difundida. Levantava dúvidas, muitas de suas obras são repletas de perguntas. Numa carta a Rousseau, no qual comenta o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, disse que o livro de Rousseau fazia surtir o desejo de voltar a ser animal, e andar de quatro patas, mas ele já havia abandonado esse hábito há sessenta anos.

- Aos 83 anos, viajou para Paris, para rever a cidade-luz, depois de tanto tempo. Teve calorosa recepção. Assistiu a uma peça sua encenada. Foi até a Academia de Letras de Paris, onde foi homenageado. Morreu em 1778 e toda a população parisiense saiu na rua, para participar do cortejo fúnebre.

- Idéias filosóficas: Voltaire sempre lutou contra o preconceito e as superstições, preferindo em lugar delas a razão e a cultura elucidativa. Para ele, preconceito é uma opinião desprovida de julgamento. Podem ser:

a) dos sentidos – ex.: o sol é pequeno, pois o vejo assim.

b) físicos – “a Terra está imóvel”.

c) históricos – p.ex., a lenda da fundação de Roma, por Remo e Rômulo.

d) religiosos – por exemplo: Maomé viajou nos céus.

Voltaire tem um tratamento racional para desvendar os mistérios da consciência humana . Dá a entender que Descartes estava errado com seu inatismo, e prefere a teoria de Locke, de que tudo deriva das sensações. A sensação é tão importante quanto o pensamento, e o mundo é uma sensação contínua. Ele faz paralelos com a cultura grega e romana, nos verbetes do Dicionário Filosófico.

As crenças têm um lado subjetivo muito forte. Esforçando-nos para ver a crença, ela acabará por existir, para nós. A moral vem de Deus, como a luz. As superstições são trevas. Para Voltaire a metafísica é uma quimera. Voltaire fala que o Ser Supremo, cuja crença veio depois do politeísmo, é válido. Disso resulta num paradoxo, pois Deus existe e não podemos conhecer os mistérios do universo. Voltaire aceita os argumentos para a existência de Deus de São Tomás de Aquino. É a causa primeira de tudo, Inteligência suprema. Ao contrário do Deus judaico-cristão, O Deus de Voltaire fez o mundo em tempos remotos e depois o abandonou ao próprio destino; por isso ele é deísta. O materialismo é preferencial à teologia. Voltaire via Deus na harmonia inteligente entre as coisas, mas negava o livre arbítrio e a providência.

2 – “Cândido ou O Otimismo”

- Este romance é sobre a história de um jovem, Cândido, que vive num castelo na Westfália, onde tem uma boa vida. Recebe ensinamentos do otimismo de Leibniz por meio de seu mentor, Pangloss, cujo mantra é: "tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Porém, depois que Cândido e Cunegunda, a filha do barão, são flagrados se beijando (aparentemente fazendo um teste empírico do conceito de “razão suficiente”), ele é expulso a pontapés do “paraíso terrestre”.

- Pouco depois, exército búlgaro invade o castelo onde Cândido mora e o transforma em soldado. Entre morrer e ser açoitado, Cândido prefere o açoite. O jovem agüenta as chibatadas de todo o regimento durante um tempo. Os pais de Cunegunda são assassinados, ela é violentada e o castelo é destruído.

- O rapaz consegue fugir para Lisboa, e no barco que o leva até lá, encontra Pangloss. Em Lisboa ocorre o terremoto. A Inquisição durou mais tempo em Portugal, que se manteve católico e não aderiu ao protestantismo. Cândido, fugindo dela, vai para o Paraguai. Cândido acha ouro no interior virgem (El Dourado, uma terra paradisíaca e cheia de riquezas minerais e hábitos civilizados, embora modestos), mas é enganado e fica sem quase nada.

- Vai para Bordeaux com o que sobrou, e depois de ser novamente enganado, passa pela Inglaterra e finalmente chega a Veneza, pois havia combinado com Cacambo que ele traria Cunegunda para Cândido nesta cidade. Porém, ele diz que a amada do protagonista está na Turquia. Todos os personagens encontrados ao longo da história (o pessimista Martinho, a prostituta Paquette, a velha, Cacambo etc.) começam a morar juntos, mas só vivem em paz depois que começam a trabalhar. Daí a lição de moral: “é preciso cultivar o jardim”.

- “Se esse é o melhor dos mundos possíveis, por que existem tantos males e injurias?” Apesar disso, o mal, para Voltaire, não é metafísico, mas sim social. Deve-se superá-lo com trabalho e com a razão. O homem deve estar sempre ocupado, para não ficar doente e morrer.

- Cândido é caracterizada por seu tom sarcástico, bem como pelo seu enredo errático, fantástico e veloz. Assim como os filósofos do tempo de Voltaire expuseram o problema do mal, o mesmo acontece com Cândido neste conto, embora de forma mais direta e ironicamente: o autor ridiculariza a religião, os teólogos, os governos, o exército, as filosofias e os filósofos através de alegorias; o alvo principal é Leibniz e seu otimismo.

- “Existe portanto o bem”, diz Cândido, ao que Martinho responde: “Mas não o conheço.” (p. 83)

- Trecho importante: no capítulo XXV, ao conhecer um senhor veneziano, Cândido se depara com várias críticas a obras que considerava clássicas (Homero, Virgílio, Cícero, Milton...).

3 – Revisão Bibliográfica

- Nildo Viana: “Cândido ou o Otimismo, obra literária de Voltaire, para ser compreendida deve ser analisada no contexto social e histórico no qual ela surgiu. A percepção deste contexto demonstra que tal obra reflete a auto-imagem do iluminismo, sendo que este busca se contrapor ao mundo feudal e isto explica a contraposição entre luzes e trevas, entre a ideologia da classe burguesa ascendente e a ideologia da classe senhorial feudal decadente. Em síntese, podemos dizer que Cândido ou o Otimismo não é uma crítica ao otimismo, mas uma crítica ao otimismo da nobreza. No seu lugar instaura o otimismo das luzes. O objetivo de Voltaire é contrapor o século das luzes à idade das trevas e demonstrar a superioridade do primeiro. E nós, herdeiros do iluminismo, continuamos otimistas e vivendo no ‘melhor dos mundos possíveis’”.

- John Gray: “mais do que qualquer outro filósofo europeu, ele exemplifica e e esclarece as limitações e contradições do Iluminismo”. Voltaire pensava que “apenas o egoísmo e os preconceitos que impediam os seres humanos de se entrarem em acordo quanto ao bem”. Porém, “Voltaire tinha de desacreditar obrigatoriamente o Cristianismo. (…) Para Voltaire, a sociedade moderna deveria obrigatoriamente secular. As crenças tradicionais estão fadadas à ruína e, Voltaire estava convencido, serão substituídos pela atitude científica. (…) Era axiomático que a autoridade da Igreja cedesse à da Ciência”.


(Fonte: Quebrando o Encanto do Neo-Ateísmo)

- Will Durant diz que os heróis dos romances de Voltaire são idéias, os vilões são superstições e os acontecimentos são pensamentos.

- Intertextualidades: Dom Quixote (Cervantes) e o otimismo, As Viagens de Gulliver (Swift) e os mundos pitorescos – e a mensagem amarga – e o deboche de Elogio da Loucura (Erasmo de Roterdã).

5 – Influências

- Voltaire influenciou diversos autores, notavelmente o “1984” de Orwell, o “Admirável Mundo Novo” de Huxley e o “pessimismo otimista” de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1891) de Machado de Assis.

- Bildungsroman: romance de formação, gênero literário muito difundido na Alemanha (Goethe, Thomas Mann, Hermann Hesse...), que às vezes tem um tom picaresco, como forma de ironia às ilusões e ingenuidades do personagem principal.

- Nietzsche e a crítica virulenta à Modernidade, encarnada no Iluminismo, e à religião cristã.

- Liberalismo econômico: a mensagem final do livro é um elogio ao trabalho e à austeridade.

6 – Questões no PAS

Figura I – Goya. Com razão ou sem ela.

Figura II – Goya. O mesmo.

Nada era tão belo, tão ágil, tão brilhante, tão bem organizado quanto os dois exércitos. As trombetas, os pífaros, os oboés, os tambores, os canhões formavam uma harmonia jamais obtida no inferno. Os canhões derrubaram, de início, cerca de seis mil homens de cada lado. Em seguida, a artilharia retirou do melhor dos mundos cerca de nove a dez mil patifes que infestavam sua superfície. A baioneta foi igualmente a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. A soma final bem que poderia chegar a algo próximo de umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, se escondeu da melhor forma que lhe foi possível durante a carnificina heroica.

Voltaire. Cândido ou o otimismo. R. Gomes (Trad.).

Porto Alegre: L&PM Pocket, 1998, p. 13.

Imagens literárias e imagens visuais podem ser instrumentos expressivos e simbólicos de crítica e questionamento. As gravuras de Goya, figuras I e II, apresentam títulos que fazem referência um ao outro: Com razão ou sem ela e O mesmo. Naquela, os soldados franceses fuzilam civis desarmados; nesta, os civis matam soldados. Tendo como referência o fragmento de texto extraído da obra Cândido ou o otimismo, de Voltaire, e a representação das gravuras de Goya, julgue os itens de 11 a 15.

11 Voltaire utiliza elementos textuais para apresentar, sem traços de ironia, a guerra como um espetáculo heroico e grandioso, encontrando para a guerra justificativa moral no fato de suas vítimas serem “patifes”. (E)

12 No trecho apresentado, verifica-se, pelo modo como o narrador contabiliza os mortos, que, na guerra, os seres humanos não são tratados como indivíduos. (C)

13 Uma ideia secundária do texto é a de que os filósofos são coniventes com as guerras, o que contrasta com a perspectiva, também presente no texto, de que vivemos no melhor dos mundos. (E)

14 Voltaire critica o tipo de filósofo que, tal como o personagem Cândido, permanece impotente e acrítico diante dos males do mundo. (C)

15 A analogia entre música e guerra utilizada por Voltaire opõe-se à abordagem suscitada nas gravuras de Goya apresentadas e nos títulos dessas obras. (E)

— Sei também, disse Cândido, que é necessário cultivar nosso jardim.

— Está certo, disse Pangloss, pois, quando o homem foi colocado no jardim do Éden, aí foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse, o que prova que o homem não foi feito para o repouso.

— Trabalhemos sem raciocinar, disse Martinho. É o único meio de tornar a vida suportável.

Toda a pequena sociedade acatou este louvável propósito e cada um passou a exercer seus talentos.

Idem, Ibidem, p. 131-132.

Considerando o fragmento de texto acima e os múltiplos aspectos que ele suscita, faça o que se pede no item seguinte, que é do tipo D.

16 A expressão “é necessário cultivar nosso jardim” refere-se a um modo de viver proposto por Cândido no diálogo com Pangloss e Martinho, depois de terem todos passado por inúmeras peripécias no que Leibniz definia como “o melhor dos mundos”, para expressar, com sua metafísica, que Deus fez deste mundo o melhor dos mundos possíveis. A citação de Voltaire é irônica e, por meio dela, o autor contrapõe o fazer metafísico dos filósofos ao modo de viver em que se pratica o que, no texto, é referido como “cultivar nosso jardim”. Tendo como referência esse contexto, explicite o sentido da expressão “cultivar nosso jardim”, utilizada por Cândido.


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