março 30, 2010

O Elitismo Anárquico das Marteladas de Nietzsche

Décimo colóquio, realizado em 30 de Março.

1 – Biografia
- Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de Outubro de 1844, em Röcken, pequena cidade em uma província prussiana da Saxônia.
- Estudou filologia clássica, embora tenha feito um semestre de teologia (por desejo da mãe, afinal seu pai era pastor). Durante o período universitário, teve contato com as obras de Arthur Schopenhauer e David Strauss. Foi professor em Basel entre 1869 e 79.
- O compositor Richard Wagner foi durante muitos anos um dos seus poucos e melhores amigos. Porém, discordâncias intelectuais e problemas pessoais levaram ao rompimento entre ambos, com Nietzsche acusando Wagner de ter se integrado à “cultura germânica”.
- Sua produção filosófica foi prolífica ao longo da década de 1880, na qual habitou as mais diversas localidades (Nice, Sils Maria, Genoa e Turim, principalmente). Em 88, à beira do ataque de loucura que encerrou sua carreira, escreveu cinco obras e ainda deixou manuscritos incompletos. Sua excêntrica autobiografia, “Ecce Homo”, foi escrita nesse ano.
- Em Janeiro de 1889, sofreu um colapso mental, que se revelou irreversível, em uma rua de Turim. Sua mãe e sua irmã passaram a cuidar dele. Morreu uma década depois, em 25 de Agosto de 1900, na cidade de Weimar.

2 – Principais Obras
- “O Nascimento da Tragédia” (1872): um tratado sobre arte dramática grega. Sua contribuição foi a oposição estabelecida entre o apolíneo (racional, ordenado) e o dionisíaco (passional, caótico).
- “A Gaia Ciência” (1882): compilação de mais de 300 aforismos. Foi neste livro que o autor falou pela primeira vez em “eterno retorno” e na morte de Deus.
- “Assim Falou Zaratustra” (1885): obra mais poética de Nietzsche. Resgate aos pré-socráticos para criticar a resignação à fé e a humildade, e propor um novo homem, acima do próprio homem.
- “Além do Bem e do Mal” (1886): escrito de caráter mais político e ambicioso, propõe, por exemplo, que o cristianismo é platonismo para o povo e que o socialismo é ideologia de rebanho.
- “A Genealogia da Moral” (1887): continuação de “Além do Bem e do Mal”, é uma investigação histórica para entender a moralidade cristã. Discute o que são ideais ascéticos.
- “O Anticristo” (1888): seria o 1º volume da “Transvaloração de todos os valores”. Possui reflexões polêmicas sobre o cristianismo: “O Evangelho morreu na Cruz”.

3 – “O Crepúsculo dos Ídolos”

- Subtítulo: “Como Filosofar a Marteladas”. “Ídolos”: tudo aquilo que foi chamado de verdade até hoje. “Crepúsculo”: a velha verdade chega ao fim, eis a boa nova. Os alvos são desde ídolos eternos até as “idéias modernas”.
- “Prefácio”: Existe poder de curar mesmo no ferimento, e há mais ídolos que realidades no mundo.
- “Máximas e sátiras”: O que não me mata torna-me mais forte. Sem a música, a vida seria um erro. Procurei grandes homens e sempre encontrei somente os macacos do ideal deles.
- “O problema de Sócrates”: Os grandes sábios como tipos de decadência. Sócrates pertencia à classe mais baixa do povo, e era feio. O tipo criminoso é feio. Com a dialética a plebe chega ao alto, derrotando um gosto refinado. A ironia era uma espécie de ressentimento popular, e o dialético degrada a inteligência de seu antagonista. A luta contra os instintos foi apenas uma nova doença, e não um retorno à “virtude”.
- “A ‘razão’ na filosofia”: A moral é, no fundo, a negação dos sentidos. Só possuímos ciência enquanto aceitamos o testemunho de nossos sentidos, enquanto armamos e aguçamos nossos sentidos ensinando-os a se dirigirem ao fim que nos propomos. Quatro proposições: I – Outra realidade é absolutamente indemonstrável; II – A “essência das coisas” não passa de um mundo de aparências, uma ilusão de ótica moral; III – Falar de um “outro” mundo é uma vingança contra a vida a partir da fantasmagoria de uma “outra” (e “melhor”) vida; IV – A divisão entre mundo “real” e “das aparências” é sintoma de decadência, pois os sentidos são a única realidade.
- “Como o ‘mundo-verdade’ tornou-se uma fábula”: com o mundo-verdade abolimos também o mundo das aparências; é o fim do erro mais demorado, ponto culminante da humanidade.
- “A moral com manifestação contra a natureza”: Ao acreditar que é preciso matar as paixões, a Igreja é contrária à vida; tanto que prega a castração e a extirpação. A moral é uma idiossincrasia de degenerados que causou profundo mal.
- “Os quatro grandes erros”: I – Erro da confusão entre a causa e o efeito (trocar as condições pelos resultados); II – Erro da falsa casualidade (o espírito como causa); III – Erro das causas imaginárias (todo o domínio da moral e da religião); IV – Erro do livre-arbítrio (a habilidade teológica para tornar alguém “responsável”, para assim punir e julgar, encontrar culpados).
- “Aqueles que querem tornar a humanidade ‘melhor’”: O juízo moral tem em comum com o juízo religioso o crer em realidades que não existem. A moral da criação (hindus) e a da domesticação (cristãos) equivalem-se nos meios que utilizam para “melhorar” a humanidade.
- “O que os alemães estão na iminência de perder”: Os alemães são vítimas dos dois maiores narcóticos europeus: o álcool e o cristianismo. As grandes épocas da cultura são épocas de decadência política (ex.: Alemanha na Era Napoleônica, França depois da Restauração). Sendo assim, a cultura aristocrática deve ser estimulada, mesmo se isso gere decadência política.
- “Passatempos intelectuais”: A hipocrisia faz parte das épocas de sólidas crenças, e hoje é raro encontrar os verdadeiros hipócritas. A filosofia de Kant fornece a fórmula superior do funcionário de Estado: aborrecido e domesticado.
O egoísmo só tem valor se representa uma linha ascendente. Uma moral altruísta, baseada em motivos “desinteressados”, é quase a fórmula da decadência. É a desagregação dos instintos.
O cristão e o anarquista (mas também o socialista) são mais parecidos entre si do que se imagina. A partir de uma “bela indignação”, os dois atribuem o próprio mal-estar a algo, seja aos outros (anarquismo) ou a si mesmo (cristianismo). É como se alguém devesse ser culpado, e querem vingança para refrescar seu ódio mesquinho. Ambos, portanto, são decadentes.
Liberdade é ter a vontade de responder de si; ser indiferente à própria vida; pôr os instintos viris (de guerra e vitória) acima daqueles da “felicidade”. O homem livre é guerreiro, pois conquista seu valor. É preciso ter necessidade de ser forte.
Os grandes homens são como as grandes épocas – explosivos, e cuja condição primeira é uma longa espera e preparação para eles. Goethe e Napoleão foram dois dos poucos homens do século XIX que tentaram vencer os erros do século anterior (por exemplo, a sangrenta farsa da Revolução Francesa) por meio de um “retorno à natureza”; mas, não aquele de Rousseau (o 1º moderno, dotado de um desprezo enorme por si mesmo), porém a natureza sublime, livre e mesmo terrível.
- “O que devo aos antigos”: Aos gregos não devo absolutamente nada, pois eles não chegam aos pés dos romanos. Dionísio deve ser venerado, pois representa o instinto da vida, e a própria procriação como via sagrada. A orgia é sentimento de vida e de força transbordante. A vontade de viver dionisíaca é a chave para entender a tragédia – eis a eterna alegria do devir.
-“O martelo fala”: De fato, todos os criadores são duros. Somente o mais duro é o mais nobre.

4 – Influências
- Pós-modernos: tanto na estilística quanto no conteúdo, Nietzsche foi uma inspiração profunda para o pensamento considerado ‘pós-moderno’. Exemplos desse legado: perspectivismo, recusa às metanarrativas, filosofia assistemática, relativismo moral e a crítica radical aos valores da Modernidade. Ex.: Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault.
- Existencialismo: Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Martin Heidegger foram influenciados por idéias como a de que o homem deve definir a natureza de sua própria existência, assim como suas indagações sobre a existência de Deus.
- Ayn Rand: a obra desta romancista e filósofa libertária tem ecos nietzscheanos em vários aspectos, como o egoísmo racional em oposição ao altruísmo servil e o “super-homem” individualista e íntegro - John Galt ou Howard Roark, p. ex. Ainda nos EUA, o jornalista H. L. Mencken, de estilo corrosivo, traduziu algumas obras do filósofo alemão, valendo-lhe o apelido de “o Nietzsche americano”.
- Teoria das elites: o pensador falecido em 1900 demonstra aristocratismo ao reiterar que são raríssimos os homens que fazem alguma diferença para a humanidade. Portanto, o destino do mundo, inclusive o político, está nas mãos de alguns poucos dotados da “vontade de potência”.
- Do Nazismo ao Anarquismo: a revolta generalizada e muitas vezes contraditória de seu pensamento inspirou desde movimentos totalitários (o Nacional Socialismo alemão, que via em Hitler o “übermensch”) até posturas contrárias a todas as instituições sociais, como anarquistas e niilistas.


março 29, 2010

Colóquio de amanhã: Nietzsche

O 10º colóquio cultural será sobre Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos mais influentes e controversos filósofos alemães dos últimos tempos. Nosso enfoque será a sua obra "O Crepúsculo dos Ídolos", cujo subtítulo é "Como Filosofar a Marteladas".

Terça-feira, às 17h, na sorveteria Palato (309 Norte). 

Clique aqui para a versão em pdf do livro.

março 28, 2010

"Os Irmãos Karamázov": Universos em Choque

Primeira reunião do grupo de Estudos Humanistas, realizada em 26 de Março. 

1. BIOGRAFIA

- Fiódor Mikhailovich Dostoiévski nasceu em Moscou, em 11 de Novembro de 1821.
- Seu pai foi assassinado, provavelmente por seus servos, quando ele tinha 18 anos. Dostoiévski, que odiava o pai, sentiu-se muito culpado por isso.
- Ligado a grupos idealistas e liberais, foi condenado à morte (1849). Porém, cinco minutos antes de seu fuzilamento, sua pena foi comutada. Esteve na prisão por cinco anos, e depois cumpriu serviço militar obrigatório por mais quatro.
- Casa-se com Maria Dimítrievna em 1857. Desenvolveu epilepsia ainda jovem, e teve vários ataques ao longo da vida.
- Viciado em jogos de azar, acumulou muitas dívidas. Vários de seus livros foram escritos para quitá-las. Seu segundo casamento foi com sua secretária, Anna Grigórievna.
- A morte precoce de seu filho muito lhe abalou. Desenvolveu ainda mais sua religiosidade, inclusive visitando um mosteiro de stárietzi.
- Em seus últimos dias de vida, tinha em mente um grande empreendimento literário, no qual sintetizaria toda a sua obra. Seriam dois livros, porém só concluiu um deles: “Os Irmãos Karamázov”. Veio a falecer em 9 de Fevereiro de 1881.
- Principais obras: “Notas do Subterrâneo”, “Crime e Castigo”, “O Jogador”, “O Idiota”, “Os Demônios” e “Os Irmãos Karamazov”.

2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
- Otto Maria Carpeaux, "Introdução": I - O parricídio como crime assustador e fascinante. II - O assassino do pai é um filho ilegítimo e rejeitado (Smierdiakóv). A visita ao mosteiro como inspiração para o pólo positivo da história (Aliócha). O russo típico: violento, mas generoso; apaixonado, mas idealista (Dmitri). O intelectual introspectivo e malicioso, que dirige invisivelmente a mão do assassino (Ivan). III - A Rússia como reino dos Karamázov. IV - Síntese de todas as possibilidades artísticas de Dostoiévski: romance policial psicológico, idealista incompreendido, intelectuais ateus, formação de caráter. V - Realismo fantástico: dizer verdades por meio de mentiras. Proselitismo em forma de verdade metafísica: "o cristianismo salvará a Rússia, e esta ajudará o cristianismo a salvar o mundo". VI - Questão central: a liberdade em conflito permanente com a autoridade; espiritualidade cristã vs. tirânica felicidade terrestre.

- Luís Pondé, "Ateísmo e Moral: Algumas Reflexões": I - Ivan Karamázov tem a seguinte tese - "Se Deus não existe, e se a alma é mortal, [então] tudo é permitido". A imortalidade da alma e Deus são instâncias de constrangimento, absoluto. II - As ciências humanas prepararam argumentos para que o ser humano fizesse o que quisesse. III - "Crime e Castigo" e "Os Demônios" antecipam tais discussões. Raskolnikóv, por exemplo, falavam em homens ordinários (para os quais a moral é válida em si mesma) e os extraordinários (valores e crenças são frutos do meio, portanto não valem nada). Este é um argumento forte e recorrente - a moral como produto da superestrutura. O extraordinário estaria fora disso, portanto pode formar seu próprio meio, "fazer a História". Esta teoria do meio, que Ivan também aceita, possui um argumento niilista, pois retira do ser humano a responsabilidade moral.

- Hannah Arendt, "A Questão Social" (em "Sobre a Revolução"): "O Grande Inquisidor" tenta desfazer a resplendente transformação de Jesus de Nazaré em Cristo, para fazê-lo voltar ao mundo dos homens e monstrar que trágico e destruidor empreendimento os homens da Revolução Francesa se lançaram quase sem saberem. Contraste entre a muda compaixão (atitudes e expressões de contenção, ligada à própria força da paixão que pode apenas abarcar o particular) de Jesus e a piedade eloquente (e o sofrimento intrínseco) do Inquisidor. O pecado do Grande Inquisidor era que ele, assim como Robespierre, era "atraído pelos homens fracos", não apenas proque tal atraição era impossível de distinguir do desejo de poder, mas também porque tinha despersonalizado os sofredores, aglomerando-os num agregado: as massas sofredoras. O sinal nítido da divindade de Jesus era a sua capacidade de se compadecer com todos os homens na sua singularidade, isto é, sem os misturar em qualquer entidade; por exemplo, "humanidade sofredora".

- Eric Voegelin, “A Nova Ciência da Política”: crítica à filosofia eslavófila, que promete uma Terceira Roma – a missão messiânica e escatológica da Rússia perante a humanidade. Em Dostoiévski, este messianismo representa uma visão ambivalente, em que uma Rússia aristocrática e ortodoxa, de alguma forma, conquistaria o mundo e, depois de tal empreendimento, transformar-se-ia em uma sociedade livre, congregação de todos os cristãos. Não há grande diferença entre tal visão e a concepção marxista de ditadura do proletariado para fundar um reino de liberdade. Além disso, sua psicologia do revolucionário possui convergências com a caracterização de Ivan e Smierdiakóv.

- Mikhail Bakhtin, “Problemas da Poética de Dostoiévski”: romance polifônico; multiplicidade de vozes, em que cada personagem individual é fortemente definido, distinguindo-se dos demais. O uso recorrente de diálogos é um meio para tal.

- Sigmund Freud, “Dostoiévski e o Parricídio”: “Os Irmãos Karamázov” revela neuras de seu autor: homossexualismo, desejo de matar o pai (complexo de Édipo).

- Niilismo passivo (negação de valores; não há sentido na vida) x ativo (transvaloração; eterno retorno, super-homem). O segundo caso é o defendido por Friedrich Nietzsche, enquanto o primeiro é típico dos personagens de Dostoiévski.

3. INTERPRETAÇÃO
- Dostoiévski parece estar constantemente em busca do Dom Quixote russo, “o homem bom”. Aliócha e Zossima representa esse ideal de salvação e união de todos os povos eslavos, formando assim uma grande família. Amor à pátria e a Deus. “Vá para o mundo”.

- Alegoria da vida intelectual russa: romantismo em Dmitri, eslavismo cristão em Alieksiêi e niilismo antiteísta de Ivan.

- Questões principais: existência ou não de Deus; limites da ação humana diante de uma lei moral; consciência da culpa e redenção pelo cristianismo; livre-arbítrio.

- Outros debates: Liberdade espiritual VS. Felicidade terrena; teoria das elites; crítica às ideologias coletivistas, opondo-lhe o eslavismo cristão (que tem aspectos de conservadorismo).

- Disputa econômica e sexual entre pai e filho: Fiódor Pávlovitch e Dmitri Fiódorovitch (Mítia) gostam da mesma mulher (Agrafiena, apelidada de Grúchenka); somando-se uma intriga sobre a herança destinada a Mítia, eles estão dispostos a tudo para alcançarem seus objetivos. De quebra, Ivan está interessado em Catierina Ivánovna, noiva de Dmitri, portanto parece estar colaborando com o irmão para que este se case com Grúchenka.

- Espectro político-ideológico: Aliócha como conservador, Ivan como revolucionário (ora anarquista, ora socialista) e Dmitri como nacionalista. Trecho sugestivo: “Mas agora tu vais para a direita e eu para esquerda” (Ivan, em diálogo com o irmão).

- “Para que vive um homem como esse?!” (L2, C6): Dmitri Fiódorovitch chega ao monastério com boas intenções, mas o dinheiro litigioso com o pai, e as provocações e gracejos do mesmo, logo o levam a se enfurecer. Segundo Ivan, “Destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força que continue a vida no mundo”. Se Deus não existe, e a alma é mortal, “o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem, mas até mesmo reconhecido como a saída mais necessária e mais racional para a sua situação”.

- “Tomando conhaque” (L3, C8): Fiódor, embrigado, resolver opor filosoficamente os dois irmãos, Alieksiéi e Ivan. Enquanto este reitera que “Deus não existe” e “também não existe imortalidade”, Aliócha afirma que “é em Deus que está a imortalidade”. Descrições obscenas de Fiódor Pávlovitch sobre sua ex-esposa (e mãe dos dois) horroriza Alieksiéi, que teve um ataque histérico muito parecido com os que a sua mãe tinha.

- “Mais uma reputação destruída” (L3, C11): encontro entre Mítia e Aliócha. Este relata o estranho episódio na casa de Catierina Ivánovna. Dmitri, perturbado (horas antes, ele batera no pai, em uma briga violenta, pois pensava que Grúchenka estava na casa), diz que irá embora. O padre Paissi relata a Aliócha o que Zossima dissera sobre ele: “Para isto eu o abençoei; lá [o mundo terreno] é o lugar dele, e não aqui, por enquanto”, pois deveria cumprir uma obrigação que seu stárietz lhe confiara.

- “A Revolta” (L5, C4): Ivan questiona a idéia de amor ao próximo: “só os distantes é possível amar”. Para ele, não existe ser mais cruel que o homem, inclusive artística e esteticamente: “se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e semelhança”.
Com descrições de atos perversos e violentos, até mesmo contra crianças, Ivan constata que prefere o sofrimento não vingado à harmonia, pois julga que se deve castigar ainda em vida, e não esperar a eternidade ou aceitar a liberdade e a compaixão. “Não é Deus que não aceito, (...) estou apenas lhe devolvendo o bilhete da forma mais respeitosa”. Aliócha diz que isto é revolta, pois existe o ser que “pode perdoar tudo, todos e tudo e por tudo, porque ele mesmo deu seu sangue inocente por todos e por tudo”.

- “O Grande Inquisidor” (L5, C5): poema de Ivan, no qual Cristo volta ao mundo em meados do Século XVI, na Espanha dos tempos de Inquisição. É importante notar que Dostoiévski não considera moral “um homem que queima hereges, porque (...) a moral [não] é uma harmonia com convicções íntimas. Isso é apenas honestidade”. O povo percebe a chega d’Ele, que tem uma presença radiante e até realiza milagres. Porém, imediatamente, o Grande Inquisidor manda prendê-lo.
Em seu monólogo (afinal, Cristo manteve-se calado durante toda a conversa), ele atribui “a si e aos seus o mérito de finalmente terem vencido a liberdade e feito isto com o fim de tornar as pessoas felizes”. Ele utiliza o encontro entre Jesus e o diabo no deserto para elucidar a importância das três tentações: o milagre, o mistério e a autoridade; são as três forças capazes de “cativar para sempre a consciência desses rebeldes fracos”.
Ele afirma que a maioria dos homens trocaria facilmente a liberdade pelo “pão da terra”; pois, quanto ao livre-arbítrio, “não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante”. Sendo assim, “nós os persuadiremos de que eles só se tornarão livres quando (...) se colocarem sob nossa sujeição”. O “rebanho” aceitará de bom grado esta servidão em prol da felicidade terrena, porém “nós que guardamos o mistério (...) seremos infelizes”, pois possuem o conhecimento do bem e do mal, “e no além-túmulo só encontrarão a morte”.
O desfecho é enfático: "Repito que amanhã verás esse rebanho obediente, que ao primeiro sinal que eu fizer passará a arrancar carvão quente para tua fogueira, na qual vou te queimar porque voltaste para nos atrapalhar". Aliócha, no entanto, diz que o poema “é um elogio a Jesus e não uma injúria”, e sentencia: “Teu inquisidor não crê em Deus, eis todo o seu segredo!”. Em seguida, repete o gesto de Cristo (que, após todo o silêncio, beijou o Inquisidor) em Ivan, em um ato de compaixão.

- “Ainda muito obscuro” (L5, C6): conversa de Ivan e Smierdiakóv. O intelectual niilista estava cada vez mais incomodado com o criado de seu pai (e também seu irmão bastardo), e a conversa soturna que trava com ele só o deixa mais assustado. Ele, apesar de ficar sabendo de toda uma conjunção de fatores que poderiam facilitar a Dmitri assassinar Fiódor na noite seguinte, mantém sua resolução de viajar no dia seguinte e abandonar tudo. “Amanhã estou partindo para Moscou, se queres saber, amanhã cedo, eis tudo!”: em frases como esta, dá sinais a Smierdiakóv que demonstram sua indiferença perante o risco de morte do pai.

4. INFLUÊNCIA
- Joy Division: um exemplo de influência dostoievskiana na arte do século XX. Ian Curtis (1956-1980) era um leitor assíduo deste escritor russo. Há referências diretas ("The Kill" lembra o dilema de Raskólnikov em "Crime e Castigo"), indiretas ("Dead Souls" é sobre o livro homônimo de outro escrito russo, Nikolai Gógol) e temáticas ("She's Lost Control" é sobre epilepsia; "Atrocity Exhibition" lembra o capítulo "A Revolta" de "Os Irmãos Karamázov"; "The Eternal" é sobre depressão existencial).


março 23, 2010

Divulgação

"Repito que amanhã verás esse rebanho obediente, que ao primeiro sinal que eu fizer passará a arrancar carvão quente para tua fogueira, na qual vou te queimar porque voltaste para nos atrapalhar". (Ivan Karamázov, "O Grande Inquisidor")

GRUPO DE ESTUDOS HUMANISTAS

Somos um projeto de extensão cuja proposta é ler, estudar e debater alguns dos maiores clássicos da Literatura, Filosofia, Política e Economia dos Séculos XIX e XX.
Como estes clássicos discutem questões centrais, tais como conhecimento, liberdade e responsabilidade? Quais são as suas principais influências? Como eles operam a mediação cultural e se relacionam com seus respectivos contextos sociais?
O primeiro encontro será sobre "Os Irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski (1821-1881).
Sugestão de leitura: os 5 primeiros dos 12 livros que compõem a obra, em especial "A Revolta" e "O Grande Inquisidor" (Livro 5, capítulos 4 e 5). [mais detalhes no post abaixo]

Dia 26 de Março, às 16h, na Sala de Reuniões do IPOL (FA).


ATUALIZAÇÃO: Clique aqui para baixar o e-Book de "Os Irmãos Karamázov".

março 21, 2010

1º Encontro - "Os Irmãos Karamázov", 26/3

Na próxima sexta-feira, dia 26 de Março, às 16h, na FA, faremos o primeiro debate do Grupo de Estudos Humanistas. A obra a ser lida é "Os Irmãos Karamázov", de Fiódor Dostoiévski.
Como serão dois encontros para este livro (o próximo, em 16 de Abril), os trechos escolhidos para o 1º estão no primeiro terço de "Os Irmãos Karamázov". A obra é composta por 12 'livros', e leremos até o 5.
Porém, como faltam só cinco dias até o encontro, e com a possibilidade de as aulas na UnB voltarem já nessa semana, sei que nem todos terão tempo de ler tudo. Sendo assim, acho que os mais importantes para a discussão serão:

- Livro 1, cap. 1 a 5 (inteiro: "Fiódor Pavlovitch Karamázov", "Descartado o primeiro filho", "Segundo casamento e novos filhos", "O terceiro filho, Aliócha" e "Os startzí").
- Livro 2, cap. 1 ("A chegada ao Mosteiro"), 6 ("Para que vive um homem como esse?!"), 7 ("Um seminarista-carreirista") e 8 ("O escândalo").
- Livro 3: cap. 1 ("Os criados"), 2 ("Lizavieta Smierdiáschaia"), 7 ("A controvérsia"), 8 ("Tomando conhaque") e 11 ("Mais uma reputação destruída").
- Livro 4: cap. 1 ("O padre Fierapont"), 2 ("Com o pai") e 7 ("Ao ar puro também").
- Livro 5, cap. 3 ("Os Irmãos se Conhecem"), 4 ("A Revolta"), 5 ("O Grande Inquisidor") e 6 ("Ainda muito obscuro").

Pela edição da Martin Claret (a mais barata e fácil de encontrar), vocês terão que ler cerca de 150 páginas. Se preferirem a da Editora 34 (que tem tradução melhor, letra maior e até desenhos/ilustrações, mas é bem mais cara), serão 210 páginas de leitura. Não sei quanto à edição da Abril (ou Nova Cultural/Círculo do Livro), mas acho que no caso dela seria em torno de 150, também.


Se possível, fichem o texto, para que o debate seja mais rico. Ainda nesta semana, farei um roteiro com possíveis pontos de discussão.

março 20, 2010

O Existencialismo Cristão em Kierkegaard

Nono colóquio, realizado em 19 de Março.

1 – Biografia

- Sören Kierkegaard nasceu em Copenhague, em maio de 1813.
- Um trauma que marcou a vida de Kierkegaard foi o fracasso de seu relacionamento com Regina Olsen. Namoraram por dois anos, e já haviam fixado a data do casamento, mas ele começou a entrar em pânico e desilusão à medida que se aproximava o matrimônio. Em agosto de 1841, rompeu com Olsen. Dali em diante, dedicou praticamente todos os seus textos à sua ex-noiva, e quando ela se casou com Johan Schlegel, sua melancolia só aumentou.
- Sua relação com a imprensa foi conturbada; ele foi criticado e satirizado por muitos de seus contemporâneos nos jornais da época, e reagia com crescente virulência.
- A Igreja Nacional Dinamarquesa foi alvo de muito de seus escritos, principalmente em seus últimos anos de vida. Kierkegaard criticou-a não só em aspectos doutrinários, como também atacou a corrupção e a burocratização do clero.
- Suas principais obras são: “Ou Isto ou Aquilo”, “Temor e Tremor” e “O Desespero Humano”. Costumava assinar com pseudônimos, como Victor Eremitus ou Johannes de Silentio.
- Aos 42 anos, caiu sem sentidos em uma rua. Um mês depois, em novembro de 1855, sofreu outro ataque e faleceu.

2 – O Desespero Humano


- O “eu” é uma relação que se estabelece apenas consigo mesmo; voltar-se para si, em uma síntese. Implica-se dessa relação consigo própria, no entanto, uma discordância interna: o desespero. Este é a “doença mortal”, ou seja, um suplício contraditório, morrer sem literalmente morrer. É querer libertar-se de si mesmo e jamais consegui-lo.
- O desespero pode tomar três formas: o desespero inconsciente de ter um “eu” (que é o verdadeiro), o desespero que não quer ser ele mesmo e o aquele que quer sê-lo. Além disso, ele possui universalidade; é raríssimo não o sê-lo.
- A suprema exigência do destino de um homem é ser um espírito, e a inconsciência deste destino espiritual é o desespero. A angústia humana reside mesmo na inocência, no belo.
- O “eu” é liberdade. Porém, I) o “eu” é formado do finito e do infinito; II) a liberdade é uma dialética do possível e do necessário. Em tais categorias de desespero, há, respectivamente: imaginário pela infinitização vs. temporal pela aparência; desejo ou nostalgia no possível vs. fatalista ou determinista.
- Porém, é a consciência que determina a medida e natureza do desespero. Quanto maior ela for, mais “eu” haverá; logo, maior será o desespero. A ignorância desesperada é a forma mais freqüente. O indivíduo é uma presa da sensualidade, e está muito distante da verdade e da salvação (ex.: pagão e cristão não-praticante, o “homem natural”).
- Há duas formas de desespero consciente; elas remetem à oposição entre feminino e masculino. I) Não deseja ser si mesmo (desespero-fraqueza): desespero temporal, do imediato vs. quanto ao eterno ou de si mesmo; II) Deseja ser si mesmo (desespero-desafio): estóico; ativo (“experimental”) ou passivo (“demoníaco”); é o tipo mais incomum.
- O pecado é quando, frente a Deus ou da idéia de Deus, demonstramos fraqueza ou desafio elevados à suprema potência; é um “desespero qualificado”. Apenas a consciência de estar frente a Deus faz do nosso eu concreto, individual um eu infinito. O pagão e o homem natural, ao contrário, têm como medida apenas o homem humano. O contrário do pecado não é a virtude, mas, sim, a fé.
- O “escândalo” é uma admiração infeliz, uma inveja que se volta contra nós mesmos. É a incapacidade de conceber o extraordinário que Deus nos destina.
- Definição socrática do pecado: pecar é ignorar. Influência grega para o cristianismo. A definição de Sócrates (que, aliás, era um moralista, tido como inventor da ética), no entanto, ainda é vaga, pois lhe falta a categoria dialética para passar da compreensão à ação.
- O pecado é posição, e não negação. É um dogma, um paradoxo necessário. A falta de arrependimento por um pecado é um novo pecado, “continuação”. Porém, como encontrar uma consciência essencial do pecado em uma vida tão cheia de mediocridade e “a - espiritual”? A maior parte dos cristãos carece tanto de espiritualidade que é difícil qualificar como pecado a sua vida.
- O pecado adquire maior intensidade quando o “eu” se desespera do próprio pecado; é uma luta interna, e a consolação só agrava o mal. O desespero quanto à remissão dos pecados é o “escândalo”. Ele pode ser por fraqueza (não ousar crer) ou desafio (recusar-se). A estética metafísica erra ao ver profundeza nessa malícia. Abstrações como “povo” e “multidão” não existem para Deus; só há “indivíduo”, o pecador particular.
- O cristianismo concorda em parte com a doutrina do homem-deus, mas coloca a possibilidade do “escândalo” (Deus se torna homem, e não o contrário - reduzir Deus ao homem -, como acreditam os pagãos). Deus e o homem são duas naturezas, mas separadas por uma infinita diferença.
- O abandono positivo do pecado (considerar o cristianismo como fábula e mentira) é o último tipo de “escândalo” (ex.: gnósticos e racionalistas). É o “eu” demoníaco, que peca contra o Espírito Santo. Enquanto isso, o “eu” no qual o desespero está totalmente ausente mergulha através de sua própria transparência no poder que o criou; eis o conceito de fé.

3 – Influências
- Jean-Paul Sartre e Albert Camus, maiores expoentes do Existencialismo francês, resgatam aspectos de seu pensamento, como o caráter inescapável do “eu” e a crítica à vida superficial.
- O conceito de subjetividade como verdade influenciou filósofos como Wittgenstein, Heidegger e Jaspers.
- Teologia: neo-ortodoxos do Protestantismo ao longo do século XX, como Paul Tillich e Karl Barth.
- Pós-modernos, como Jacques Derrida, inspiraram-se em seus questionamentos ontológicos e suas críticas às estruturas.
- Franz Kafka e Hermann Hesse: suas narrativas possuíam personagens em profundas crises existenciais e isolados.

KIERKEGAARD, Sören. "O Desespero Humano". São Paulo: Martin Claret, 2004.

março 16, 2010

Próximo colóquio

O nono colóquio será sobre "O Desespero Humano", a obra mais famosa de Sören Kierkegaard, um filósofo dinamarquês muitas vezes intitulado de 'existencialista cristão'.

Sexta-feira, dia 19 de Março, às 19h, na Sorveteria Palato (comercial 309 Norte).

março 13, 2010

Ludwig von Mises, o Último e o Primeiro

Oitavo colóquio, realizado em 12 de Março.

1 – Biografia

·                     Nasceu em 1883 na cidade de Lemberg, que à época pertencia ao Império Austro-Húngaro (atualmente, localiza-se na Ucrânia).

·                     Estudou na Universidade de Viena, onde obteve seu doutorado em 1906. O economista Carl Menger exerceu influência sobre seus estudos. Também freqüentou palestras de Eugen von Böhm-Bawerk e foi amigo de Max Weber.

·                     Temendo a perseguição nazista, deixou a Áustria em 1934, mudando-se para a Suíça. Seis anos depois, emigrou para os Estados Unidos. Lecionou como professor visitante  na New York University entre 45 e 69. Sempre enfrentou dificuldades financeiras, e durante muitos anos recebeu ajuda do Volker Fund.

·                     No final de 1958, pronunciou seis conferências em Buenos Aires, nas quais divulgou as bases do pensamento econômico liberal. Anos depois de sua morte, sua esposa publicou as transcrições, sob o título de “As Seis Lições”.

·                     Mises veio a falecer aos 92 anos de idade, em Nova York (1973).

 

2 – Principais Obras

·                     “Socialismo” (1922): foi pioneira e profética quanto aos problemas de uma política econômica socialista e suas conseqüências sociais e morais. 1ª exposição da tese da impossibilidade do cálculo econômico no sistema socialista.

·                     “Liberalismo segundo a Tradição Clássica” (1927): a partir dos direitos de propriedade individuais e ao se manter livre de intervenção governamental, o liberalismo promove paz, harmonia social e o bem-estar geral.

·                     “Uma Crítica ao Intervencionismo” (1929): Mises demonstra que uma economia de mercado controlada, como se fosse um sistema social intermediário entre a propriedade privada e a pública, é ineficiente, não alcançando os resultados que almeja. Não há meio-termo entre uma ordem social livre e uma totalitária.

·                     “Ação Humana” (1949): considerado o mais importante tratado de economia do Século XX. A economia é uma ciência da ação humana, ou seja, praxeologia. A partir de críticas epistemológicas ao positivismo e metodológicas à economia matemática, Ludwig von Mises expõe as vantagens de uma economia de livre mercado em relação ao planejamento governamental. O funcionamento do mercado e dos preços, o cálculo econômico e a expansão de crédito também são discutidos.

·                     “A Mentalidade Anti-Capitalista” (1956): quais são as raízes psicológicas de uma postura anticapitalista? O autor acredita que a meritocracia e o empreendedorismo típicos de um sistema de livre mercado geraram ressentimento entre vários setores, especialmente os artistas e intelectuais.

 

3 – “As Seis Lições”

·                     Capitalismo

- O agente principal do sistema econômico são os consumidores, e não os empresários.

- A partir da grave situação social do séc. XVIII surgiram inovadores que começaram a produzir bens mais baratos (produção em massa).

- Progressos são frutos da acumulação de capital, e poupança significa benefícios para todos que querer produzir ou receber salários. Quanto mais se eleva o capital investido por indivíduo, mais próspero se torna o país (melhoria do padrão de vida).

·                     Socialismo

- Enquanto liberdade econômica é o poder de escolher o próprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade, um sistema socialista propõe que as carreiras sejam decididas por decreto do governo.

- O homem não nasceu livre; ele depende tanto dos demais quanto estes dependem dele. Liberdade significa realmente liberdade para errar, portanto ninguém deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas e manifestar certas opiniões.

- O socialismo é uma visão do governo como uma autoridade paternal, um guardião de todos. O planejamento central impede todo plano feito por outra pessoa. Tudo depende da sabedoria e dos dons daqueles que detêm a autoridade suprema.

- O Estado não deve subsidiar as artes; cada um deve agir por conta própria, não cabendo ao governo definir aquilo que é bom e elevado ou não.

- O cálculo econômico – e, por conseqüência, todo planejamento tecnológico - é impossível se o mercado (sistema de preços) for abolido.

·                     Intervencionismo

- É quando o governo deseja interferir em vários fenômenos do mercado, como os preços, os padrões salariais, as taxas de juros e os lucros. Todas estas medidas objetivam restringir a supremacia do consumidor.

- Ao querer tornar um artigo mais abundante (ampliar sua oferta), o Estado, ao controlar os preços, gera justamente o contrário do que pretendia: escassez e preços mais altos. E as intervenções, sucessivamente fracassadas, não costumam ser isoladas, levando a um controle cada vez maior da economia. Sempre que se interfere no mercado, o governo é progressivamente impelido para o socialismo.

- Não existe um terceiro sistema, um meio-termo. O Estado não é capaz de cumprir sequer suas obrigações básicas, sendo ainda menos apto para gerar justiça social.

·                     Inflação

- É gerada não pelo modo como o dinheiro dos contribuintes é gasto, mas sim o modo como é obtido pelo governo.

- A expansão de crédito (dinheiro recém-impresso) levará a uma elevação dos preços. Todos aqueles que têm acesso ao dinheiro na 1ª hora da inflação são beneficiados, em detrimento dos demais.

- O processo inflacionário, quando o povo perde a confiança em relação aos poderes (ou intenções) do governo em enfrentá-la - como se este tivesse recursos ilimitados -, produz uma alta tão grande nos preços que o sistema monetário entra em colapso (ex.: Alemanha, 1923).

- A inflação é uma política, e uma política pode ser alterada. É preciso equilibrar o orçamento. Além disso, não devemos acreditar na falácia de um trade-off entre inflação e desemprego (Keynes).

·                     Investimento Estrangeiro

- A diferença econômica entre as nações desenvolvidas e aquelas em desenvolvimento não reside na inferioridade pessoal nem na ignorância, mas na disponibilidade de bens de capital, ou seja, o montante investido per capita.

- O investimento externo foi talvez o maior acontecimento histórico do século XIX, acarretando em inúmeras vantagens. Porém, ele é feito na expectativa de que não será expropriado. A hostilidade ao investidor estrangeiro, visto como explorador, é uma visão superficial do problema.

- Para que haja maior igualdade econômica no mundo, a industrialização é necessária. Alcançar a meta final de elevar o padrão de vida em toda a parte demanda liberdade econômica, e não controles, proteções ou socialismo.

·                     Política e Idéias

- A democracia se tornou uma luta de grupos de pressão pela manutenção de seus interesses e privilégios, desprovendo a sociedade de uma representação política autêntica. Hoje não se fala mais em liberdade. Pequenos grupos se apropriam dos recursos do Estado a expensas da maioria.

- Más políticas econômicas desintegram sociedades (ex.: Roma). Além disso, as civilizações são interdependentes.

- Precisamos substituir más idéias por idéias melhores. Somente elas podem iluminar a escuridão.

 

4 – Influência

·                     Escola Austríaca: discípulo de Carl Menger e Böhm-Bawerk, é considerado parte da 3ª Geração dessa escola heterodoxa de pensamento econômico, responsável por conceitos como utilidade marginal e teoria do valor subjetivo.

·                     Friedrich A. Hayek: discípulo de Mises, Hayek desenvolveu a teoria dos ciclos econômicos criada por ele. Graças a seus esforços teóricos, ganhou o Nobel de Economia em 1974.

·                     Libertarianismo: movimento político, filosófico e econômico que defende o Estado-mínimo e um liberalismo aprofundado, os “radicais pelo capitalismo” tiveram em Mises uma de suas maiores inspirações. A relevância deste economista austríaco estende-se desde o individualismo metodológico até o aspecto ideológico de sua defesa do livre mercado e sua crítica ao socialismo.

·                     Mises Institute: fundado em 1982 nos EUA, é uma think tank inspirada nas idéias de Ludwig Von Mises. Expressa posições libertárias, pacifistas e não-intervencionistas. Também possui sedes em outros países, inclusive o Brasil.

MISES, Ludwig von Mises. "As Seis Lições" (3ª ed.). Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1989.

março 12, 2010

Relembrando...

O colóquio sobre "As Seis Lições" de Mises será hoje, na sorveteria Palato (309 Norte), às 7 da noite. Daqui a algumas horas, publicarei um roteiro/fichamento que preparei para as discussões.

Contato: kaiofelipe@gmail.com 

março 08, 2010

Texto para o próximo colóquio - Mises

O próximo colóquio será sobre o pensamento econômico e político de Ludwig von Mises (1881-1973), considerado o maior representante da Escola Austríaca de Economia no Século XX. A sugestão de leitura é "As Seis Lições", provavelmente seu livro mais simples e acessível.

Clique aqui para a versão em pdf (fonte: Ordem Livre), ou aqui para a versão online, em HTML (fonte: Instituto Ludwig von Mises Brasil). Amanhã o texto também estará disponível na pasta 11 da Xerox do CADIR, localizada na FA (vulga Faculdade de Direito), na Universidade de Brasília.

A seguir, as referências bibliográficas dos sete colóquios anteriores:

1. RAND, Ayn. "A Virtude do Egoísmo". Porto Alegre: Ortiz, 1991.
2. FRIEDMAN, Milton. "Capitalismo e Liberdade". São Paulo: Artenova, 1977.
3. RANGEL, Carlos. "Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário". Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
4. THOREAU, Henry David. "Walden: A Vida Nos Bosques (seguido de A Desobediência Civil)". São Paulo: Ground, 2007.
5. HAZLITT, Henry. "Economia numa Única Lição" (4ª ed.). Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
6. LA BOÉTIE, Étienne de. "Discurso sobre a Servidão Voluntária" (2ª ed.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
7. VOEGELIN, Eric. "A Nova Ciência da Política". Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

março 07, 2010

Teoria Política e Teologia em Eric Voegelin

Sétimo colóquio, realizado em 5 de Março.

Biografia

  • Nasceu em 1901, na cidade de Colônia (Alemanha).
  • Estudou Direito na Universidade de Viena. Um de seus orientadores de dissertação foi Hans Kelsen.
  • A ascensão do nazismo obrigou ele e sua esposa e emigrarem para os Estados Unidos. Voegelin obteve cidadania americana em 1944.
  • Veio a falecer aos 84 anos de idade, em Palo Alto (EUA), no ano de 1985.

 

“A Nova Ciência da Política”

  • Publicado em 1952, este livro foi composto a partir de uma série de conferências que o autor havido lecionado na Universidade de Chicago, dois anos antes.
  • Uma teoria não é apenas a emissão de uma opinião a respeito da existência humana em sociedade, mas também uma tentativa de formular o sentido da existência. Sua explicação parte da validade do conjunto de experiências ao qual a teoria precisa se referir para permitir o controle empírico.
  • Toda ordem social assenta-se em uma ordem cognitiva; ou seja, a organização política reproduz a apreensão que certa sociedade tem da ordem da realidade.
  • Verdade cosmológica: o império é como um microcosmo: um pequeno mundo que reflete a ordem do mundo maior. Portanto, ele expressa uma verdade em si.
  • Verdade antropológica: a sociedade é a alma do homem escrita por extenso. Ela orienta a si própria para um Deus que permanece imóvel em sua transcendência. Surge com a filosofia grega – Platão (“Deus é a medida”) e Aristóteles (“summum bonum”), principalmente.
  • Verdade soteriológica: a salvação é dada por Deus. Há uma mutualidade na relação com Deus, por meio da encarnação do Logos em Cristo.
  • O cristianismo teve um importante papel na desdivinização da realidade. A partir da visão de que o homem é contemplador racional e senhor pragmático de uma natureza que perde seu caráter demoníaco. Ou seja, a Verdade está no mundo espiritual, e não no material, mundano.
  • Redivinização da realidade: o movimento gnóstico. A idéia de “fim da História”. A psicologia do revolucionário.
  • Conseqüências políticas e sociais: Renascença, Reforma Protestante, Guerras Religiosas, Iluminismo, Revoluções Burguesas, Impérios, Socialismo, Nazismo.
  • A abolição do "amor Dei" em prol do "amor sui" levou a um lento e contínuo colapso moral da Modernidade, época "do homem que está intelectual e espiritualmente desorientado, e por isso, motivado principalmente por suas paixões.
  • Sendo assim, as ideologias de massa refletem uma crise espiritual do homem moderno, levando ao extremo os problemas intrínsecos ao movimento gnóstico.

 

Influência

  • Olavo de Carvalho: estilo escolástico. “O Jardim das Aflições” e a relação entre Epicuro e Marx.
  • Russell Kirk e William Buckley, responsáveis pelo renascimento do pensamento conservador nos Estados Unidos, na década de 50. Kirk publicou “The Conservative Mind”, e Buckley fundou o prestigiado periódico National Review.

O Pioneirismo de La Boétie

Sexto colóquio, realizado em 26 de Fevereiro.

1. Biografia
- Étienne de La Boétie nasceu em Sarlat, no ano de 1530.
- Estudou Direito na Universidade de Orléans, que era um dos principais centros de estudos jusnaturalistas à época.
- Amigo de Michel Montaigne, outro importante humanista francês. Como La Boétie não publicou nenhuma obra em vida, Montaigne herdou e compilou seus manuscritos.
- Seu "Discurso sobre a servidão voluntária" foi utilizado por huguenotes para a defesa da tolerância religiosa, em uma versão resumida e modificada, cujo título era "O Contra Um".
- Morreu com apenas trinta e dois anos, em 1563, provavelmente vítima de uma peste que assolava a França.

2. "Discurso sobre a servidão voluntária"


- Uma tentativa de psicologia social: por que a população conduz tiranos ao poder? Há uma passividade generalizada perante o Estado.
- Demagogos utilizam o medo e a ordem como justificativas para o estabelecimento de ditaduras. A liberalidade e a propaganda ideológica são alguns dos meios empregados para obter o consentimento popular.
- Até que ponto a segurança é preferível a uma vida livre? A liberdade é uma condição natural do homem, e deve ser defendida. Os direitos naturais legitimam uma resistência a governo tirânicos.
- O problema central da filosofia política é o mistério da obediência civil. Todo governo sustenta-se em um consentimento da maioria, seja esta silenciosa ou não. Qual seria, portanto, a estratégia mais adequada para impedir que o Estado se torne despótico?
- Lutar pela liberdade é se sacrificar pela manutenção da felicidade, é evitar uma vida desagradável. A liberdade é um bem tão grande que, quando perdida, todos os males acontecem e os bens remanescentes são enfraquecidos, corrompidos pela servidão. Acima de tudo, basta querer ser livre para sê-lo.
- No combate, os livres disputam pelo melhor, cada qual pelo bem comum e por si, contribuindo tanto na derrota quanto na vitória. Já os subjugados perderam não só a liberdade, como também a valentia e a vivacidade.
- Há três espécies de tiranos, de acordo com o meio pelo qual chegam ao poder: eleição do povo, força das armas e sucessão hereditária. Todos são cruéis e têm seus vícios, sendo impossível escolher qual representa um mal menor.
- A 1ª razão da servidão voluntária é o costume. É da natureza do homem querer consrvar o hábito que lhe foi dado pela criação. Portanto, os homens servem de boa vontade porque nasceram servos e foram criados como tais.
- Teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores etc.: eis os atrativos da servidão. O "pão e circo" distrai o povo da opressão.
- Júlio César, infelizmente pouco criticado e muito exaltado até hoje, foi um exemplo clássico de "doçura venenosa" que revoga as leis e a liberdade; sua suposta humanidade foi vista como efeito amenizador de sua conduta ditatorial.
- Há povos que caem por dinheiro. Em outros casos, a religião é o recurso dos tiranos, como proteção e legitimação.
- A criação de cargos cria novos sustentáculos da tirania. Os servidores muitas vezes são piores que seus amos; são ambiciosos e bajuladores. Além disso, é uma forma de vida lamentável, pois instável e pouco segura para ambos os lados.


3. Influência


- La Boétie pode ser considerado como o 1º filósofo político libertário do Ocidente. Um dos primeiros advogados da desobediência civil e pacífica.
- Movimento libertário contemporâneo. Autores como Rothbard resgataram La Boétie para a crítica o Estado e a defesa da liberdade.


Utilizei a 2ª edição do livro (2009), pela editora Revista dos Tribunais.

Desmascarando Falácias Econômicas com Henry Hazlitt

Quinto colóquio, realizado em 12 de Fevereiro.

Usei como base do fichamento do Hazlitt a 4ªedição de seu livro, publicada pelo Instituto Liberal (1990), assim como a versão resumindo que eles lançaram como complemento à revista Banco de Idéias. Sobre o Thoreau, baseei-me na 7ª edição de Walden + A Desobediência Civil, pela editora Ground (2007).

1. Biografia

· Henry Hazlitt nasceu em 1894, na cidade de Nova York.

· Economista e jornalista, ele trabalhou em publicações como o Wall Street Journal, o New York Times e a Newsweek. Foi editor do Freeman.

· Foi o 1º vice-presidente da FEE (Fundação para a Educação Econômica), que há mais de sessenta anos promove divulga idéias pró-livre mercado e libertárias.

· Ajudou Ludwig Von Mises, importante economista austríaco, que havia emigrado de uma Europa à beira da II Guerra, a se estabelecer na América, inclusive com assistência financeira.

· Escritor prolífico, durante sua vida publicou 25 obras, a maioria sobre economia e ética.

· Morreu aos 98 anos de idade, em Julho de 1993, também em NYC.

2. “Economia numa única Lição”

· Bastiat e seu ensaio “O que se vê e o que não se vê” serviram de inspiração para Hazlitt, ao evocarem uma fundamental lição sobre economia política: “a arte de ver não apenas os efeitos imediatos de qualquer ato ou política, mas também os mais remotos; é descobrir as conseqüências dessa política não apenas com os grupos ou setores diretamente envolvidos, mas para todos eles”.

· Análise e crítica das principais falácias econômicas, a partir do erro central de todas elas. O alvo principal, é claro, é o keynesianismo e seu impacto na política econômica de governos do mundo inteiro.

· Parábola da vitrine quebrada: um moleque atira um tijolo na vidraça de uma padaria. O senso comum veria um lado proveitoso nisso – proporcionar emprego ao vidraceiro, que por sua vez terá mais dinheiro para gastar com comércio. Logo, a destruição, ao invés de ser vista como ameaça pública, seria uma boa ação. Porém, o ato de vandalismo também prejudicou o padeiro, que terá que gastar o dinheiro que investiria em outra coisa (um terno, por exemplo) comprando outra vitrine. Seguindo a mesma lógica, é menos emprego para o alfaiate. Ou seja, na melhor das hipóteses, a vitrine quebrada manteve a economia como estava; apenas favoreceu um grupo em detrimento do outro, sem criar novos empregos. Eis a metáfora que indica a falácia da idéia de demanda “agregada”, “insatisfeita”.

· Obras públicas: vê-se de imediato os empregos criados para, p. ex., construir uma ponte. Isso, contudo, envolve custos: mais impostos sobre as pessoas e empresas, expropriando capital que poderia ter criado empregos em outras áreas. O aumento excessivo de impostos desencoraja e desorganiza a produção, logo não há aumento de riqueza.

· Empréstimos governamentais e créditos desviam a produção para investimentos mais arriscados e menos lucrativos. O governo não tem a mesma preocupação (tampouco a capacidade) da iniciativa privada em saber se o dinheiro está sendo bem aplicado.

· Pleno emprego: é comum colocar-se salários e empregos como um fim em si mesmo, esquecendo-se de que eles são os meios para a produtividade e da produção. Seria como distribuir o bolo antes mesmo de fazê-lo crescer.

· Controle de preços: os preços são determinados pela oferta e a demanda (procura), a partir das necessidades dos consumidores e os custos de produção. Tentativas de “congelá-los”, seja com um teto ou um piso, prejudicam o funcionamento da economia – geram-se efeitos contrários aos previstos pela política. No primeiro caso, porque a demanda fica desproporcionalmente maior que a oferta, gerando escassez e aumento de preços. No segundo, porque a oferta bem maior que a procura acarreta em superprodução e desemprego.

· Controle de aluguéis: este, sob a alegação de proteger os inquilinos do aumento do preço dos aluguéis, discrimina os que não ocupam casas ou apartamentos em favor daqueles que já têm moradia. Além disso, diminuem-se os incentivos para que se construam novas moradias, e aquelas que já existem se degradam, pelo desinteresse dos proprietários em conservá-las.

· Salário mínimo: antes de tudo, o salário é um preço como outro qualquer. Sendo assim, elevá-lo por decreto gerará resultados indesejáveis; basicamente se substitui o salário baixo pelo desemprego. Impedem-se, assim, salários que poderiam crescer graças ao aumento da produtividade do trabalho e do acúmulo de capital.

· Política industrial: salvar indústrias à beira da falência é desviar capital e trabalho de mão-de-obra das indústrias em que estes estão empregados de maneira mais eficiente. Prejudicam-se, assim, os contribuintes e as demais indústrias. Conseqüentemente, cria-se menos riqueza e diminui-se o padrão de vida da população. O mesmo raciocínio vale para os subsídios agrícolas.

· Inflação: como todos os exemplos vistos anteriormente, favorece alguns grupos (aqueles que forem os primeiros a receber o dinheiro adicional) em detrimento da maioria da comunidade. Ela distorce a estrutura de produção, levando à má aplicação e ao desperdício (consumo de capital), e um subseqüente colapso. Assim como os impostos, a inflação desestimula a prudência e a encoraja o desperdício. Especular torna-se mais lucrativo que produzir.

· Lucros: servem para indicar quais as mercadorias mais econômicas para se produzir, assim como os meios mais econômicos para produzi-las. Ou seja, permitem identificar como diminuir os custos e aumentar a eficiência.

· Poupança: ao contrário do que dizem os keynesianos, poupança é apenas outra forma de gastar; é uma provisão para o futuro. Dizer indiscriminadamente que ela é entesouramento ou investimento é uma falácia – aquilo que é economizado em bens de consumo é gasto em bens de capital, sem retração. Por meio da taxa de juros, poupança e investimento tenderão a igualar-se.

3. Influência

· “Economia numa única lição” (1946) foi um dos livros de economia mais vendidos do século XX: quase um milhão de cópias.

· Ajudou a trazer as idéias econômicas da Escola Austríaca para o público de língua inglesa. Com isso, teve importância ao divulgar o pensamento libertário (e suas críticas à intervenção estatal na economia) para uma maior audiência.

· Constituiu-se em um dos principais críticos do keynesianismo nos EUA. Seu livro “The Failure of the New Economics” (1959), por exemplo, é uma refutação, página por página, da “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, obra-prima de Keynes.